segunda-feira, 14 de março de 2022

Três cartas (Diário de Cecília, 1927)

 

Sexta-feira, 15 de julho


Três longas cartas de papai, chegadas pelo mesmo correio, a primeira para Dolores, a segunda para a Nia e a terceira para Maninha.


Começa assim a longa carta para Dolores:


A tua boa cartinha azul, de 29 de junho, é a primeira e única que tenho recebido dos 8 filhos que aí ficaram, escrita só para mim. Gostei, naturalmente, das notícias que nela me dás. Dize às outras e ao Francisco que façam o mesmo. Quando falares ao Araci, dize-lhe que também me escreva, dando as cartas a vocês, para as emalarem.


As notícias da Estância Nova, dadas por ele mesmo, devem ser mais interessantes e mais completas. Podes dizer-lhe que estou satisfeito com o cuidado dele, pelas informações que me vem de lá, e que já esperava que ele assim procedesse.


Dize mais ao Araci que deve ir graduando para menos as rações dos cavalos que se apresentarem muito gordos. O trato é só para os conservar em boas carnes durante o inverno. Temos de pensar em diminuir as despesas quanto possível.


O araci deve arrocinar o meu cavalo bom, a fim de que se preste para o meu andar. Não esquecer de ensinar-lhe a ficar bem quieto, para deixar subir o cavaleiro, como fia o Íris.


A nossa vida aqui é muito maçadora: a Quinquim, a Lina e eu temos aula todos os dias – a Kiki nas Belas Artes, a Lina no Colégio Jacobina e eu na Câmara. Só a Mamãe é a felizarda, mas tem todo o tempo ocupado em receber e pagar visitas”.


Entre outras observações, Papai assim descrevia este plano, na longa carta à Nia:


Um destes dias devo ir com o Virgilino e o Guilherme Guinle visitar uma propriedade que este comprou, de bom campo e mato, a meia hora do Rio, e que deseja explorar de acordo com um plano sugerido por mim.


Imagina que são 15 léguas e pico de campo.


O meu plano já está formado: escolher umas três léguas do melhor, dividir a primor, pelo sistema A. B. e estabelecer uma grande leiteria central e 6 ou 8 filiais, em torno, todas elas com plantações de milhares de laranjeiras, por peritos vindos da Califórnia, destinadas a abarrotar os mercados.


O homem gastou 8 mil contos na compra da propriedade: veremos se ele tem espírito para completar os dez mil, gastando apenas dois com a realização do meu plano.


As 13 léguas restantes, aconselhei que divida em fazendas de criação e lavoura e que as vá vendendo à medida que forem valorizando”.


Finalmente, na carta à maninha, entre outras notícias, Papai conta este lamentável episódio:


E, a tudo isto, ainda os estudantes me agarraram de pés e mãos, como um leitão, à minha chegada aqui, deixando os gatunos me remexerem livremente os bolsos e roubarem à minha vista o embrulho em que trazia os 600 e tantos pesos que sobraram das despesas de Buenos Aires e das passagens do vapor.


Esse dinheiro veio comigo, porque as passagens não foram settled em Buenos Aires, deixando-se para Montevidéu, onde se tinha feito um ajuste especial, com promessa de uma forte redução, em atenção a sermos seis os passageiros – nós 4 e mais Firpo e Câmara Canto.


Chegando ali, os ingleses roeram a corda, cobrando-nos talvez mais ainda do que aos outros. Feitas as contas e tudo pago, o vapor, que apenas demorou ali algumas horas (2, se tanto), durante a noite, não me deu tempo de encontrar uma pessoa a quem entregar a sobra da plata uruguaia, para nos ser remetida.


Deixei para o fazer aqui. O resultado foi o conhecido.


Naturalmente, não me ralei, porque sou indiferente a prejuízos materiais, nem me incluí na classe dos sem-vergonha 9que é como chamo a quem se deixa bater a carteira), porque as circunstâncias em que os gatunos me limparam foram as mais extraordinárias e inesperadas.


O Vapor foi invadido quando eu menos esperava.


Não tive tempo nem para tirar dos bolsos os valores que trazia e dá-los à Lídia.


Logo à saída, sou agarrado pelos pés e braços, e, por mais que me debatesse e girasse, os bárbaros não me largavam nem me ouviam.


Enfim, a Lina já descreveu bem essa cena cômica na carta que lhes escreveu logo à chegada”.


As destinatárias das cartas do Papai não cabem em si de contentes.


Achamos muita graça na narrativa do roubo que o papai sofreu.


Deve ser a “urucubaca amarela”, das quadrinhas do Fonsequinha.


Fonte: Assis Brasil, Cecília. Diário de Cecília Assis Brasil, org. por Carlos Reverbel. Porto Alegre, L&PM, 1983, p.144/145/146.




Capa: L&PM Editores sobre foto do Castelo de Pedras Altas, Rio Grande do Sul.

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