segunda-feira, 10 de outubro de 2022

93 e 23 (Carlos Reverbel)

 

Mas sempre há lugar para um pouco de filosofia. Não em 93, mas em 23, espécie de modelo reduzido, de segunda parte meio frustrada da primeira tragédia (e, sem querer fazer humor, dizia Cervantes que as continuações dos bons livros não costumam ser boas), ocorreu certo fato que merece registro. Contam que certos caudilhos fizeram o possível para reeditar os horrores de três décadas antes e alguns, honra seja feita, com relativo sucesso”.


Na transcrição que acabo de fazer, Carlos Rafael Guimaraens (“Lição da Ferocidade”, Correio do Povo, 6-11-77) chama atenção para a circunstância de que as cenas de banditismo registradas na Revolução de 23 seriam uma ‘imitação”, felizmente bastante atenuada, das atrocidades que caracterizaram a Revolução de 93, tendo como traços marcantes os degolamentos, por vezes praticados em profusão, como no rio Negro e no Boi Preto.


O artigo foi lançado a propósito da reedição de Voluntários do Martírio, de Ângelo Dourado, médico e herói da coluna do grande guerreiro Gumercindo Saraiva. E, como sempre, o Guimaraens trouxe uma contribuição singular pela agudeza de suas observações e pela segurança dos seus conceitos, justificando, mais uma vez, a homenagem que não se pode deixar de prestar à luminosidade de sua inteligência e ao vigor do seu espírito: é um senhor jornalista, como seria, se o quisesse, um senhor ensaísta.


Há espíritos que me fazem lembrar a metáfora de J. Simões Lopes Neto, quando disse que “o sol olha pra água, atravessando”. Pertencem a uma estirpe que se distingue pela capacidade de penetração no âmago dos fatos e das coisas (e o Carlos Rafael Guimaraens faz parte dessa pequena-grande família).


Recolhi um subsídio ao vivo, por me ter sido contado pelo principal protagonista do episódio, que se enquadra na “espécie de modelo reduzido” de que fala o Guimaraens na sua apreciação sobre 23 em relação a 93.


No combate de Santa Maria Chico, que foi um dos primeiros da Revolução de 23, um combatente da força legalista desgarrou-se de sua gente, durante a ação, ocultando-se num caponete, que não tardou a ser envolvido por um piquete adversário. Ali surpreendido, foi imediatamente passado pelas armas, isto é, degolado.


Tratava-se de simples soldado, por sinal peão de estância, como também eram os que lhe aplicaram a terrível “gravata colorada”, não existindo entre os que o aprisionaram e degolaram nenhum combatente graduado, tudo se consumando entre homens da mesma extração galponeira, mas que se criaram ouvindo “causos” de degola acontecidos na Revolução de 93.


Quando o episódio chegou ao conhecimento do bravo Cel. Clarestino Bento, ele próprio veterano de 93 e comandante do destacamento de que faziam parte os responsáveis pela atrocidade, este os admoestou com severidade, advertindo-lhes que, em caso de reincidência, seriam castigados exemplarmente, ficando sujeitos até mesmo à pena de fuzilamento sumário. Nada faria dessa vez porque todos os implicados eram soldados inexperientes, que haviam entrado na linha de fogo pela primeira vez. E, além do mais, o combate tinha sido ganho pelo inimigo…


Então, destacou-se do grupo o soldado que havia “pedido a bolada” e executado pessoalmente o ato da degola, dizendo as seguintes palavras à guisa de justificativa: “Me desculpe, seu coronel, mas sempre ouvi dizer que prisioneiro se passa na faca”.


Este episódio, a respeito de cuja autenticidade não tenho dúvidas, serve para demonstrar que, durante as três décadas que se estenderam entre as duas revoluções, ficou na memória da gente da campanha gaúcha “a lição de ferocidade” a que se refere Carlos Rafael Guimaraens, no seu excelente artigo sobre Voluntários do Martírio.


Por sinal, o lendário Adão Latorre, apontado como um dos maiores degoladores de 93, morreu no combate de Santa Maria Chico, com cerca de 80 anos, comandando uma carga de lança, à frente de uns poucos companheiros, contra forte linha inimiga, que atirava de metralhadoras. E, por sua vez, também foi degolado, mas só depois de morto…


Dir-se-ia que fora impelido, na hora da derradeira carga de lança, pelos fantasmas de 93.


Capa: Tânia Porcher

Foto: Jorge Rolla



Fonte: Reverbel, Carlos. Barco de papel. Porto Alegre: Editora Globo S.A., 1978, p. 173/175.

Nenhum comentário:

Rodovias Gaúchas com alteração de Fluxo - CRBM, DAER e PRF

Link: https://www.google.com/maps/d/viewer?hl=pt-BR&ll=-28.28439367125109%2C-53.045925850387164&z=7&mid=1ZlKA__gK8tH-WY6mbDeQzlt...