quarta-feira, 5 de outubro de 2022

Memórias de João Daudt Filho (Carlos Reverbel)

 

Meu pai, precisando de cozinheira, comprou uma. Dizia o dono, ao oferecê-la, que ela não servia para o trabalho da roça, por isso vendia por qualquer preço. Já lhe havia dado uma tunda de laço, mas de nada serviu porque ela não prestava mesmo para o que ele necessitava. Chegou em casa toda encolhida, gemendo de dores, em estado lastimável, com as costas em carne viva, crivada de lanhos fundos feitos pela tunda de que se vangloriava o antigo senhor. Até bichos tinham as feridas. Chamava-se Felicidade.”


Este episódio aconteceu na cidade de Santa Maria da Boca do monte, na década de 1860. E vem narrado num livro há muito esgotado, quase raridade bibliográfica: Memórias, de João Daudt Filho.


O autor relembra, além desse, diversos outros da época da escravidão em Santa Maria, de que foi contemporâneo, quando ali vivia com seus pais, ainda menino. Menciona, inclusive, a existência de um quilombo, num dos morros que circundam aquela cidade, fato de que não se tinha informações. Atribui aos escravos a propagação de crendices tais como o boitatá, o minhocão, o lobisomem, o bicho-tutu. E não deixa de narrar uma série de atrocidades de que os escravos eram vítima, a exemplo daquelas pelas quais passara Felicidade, comprada para cozinheira de sua família.


Aqui vai outro episódio, no gênero: “nunca pude esquecer um quadro horrível que vi quando ainda era menino, estando de passeio em casa de meus tios, negociantes, na estrada da Serra. Chegou ali uma escolta de quatro soldados a cavalo, conduzindo um negro a pé, seminu, de corda ao pescoço puxada por um dos soldados, os dois braços amarrados pelas costas e o corpo todo ferido dos golpes de espada. O pobre negro era obrigado a acompanhar o trote dos cavalos”.


O capítulo sobre a escravidão dá a medida, por si só, do interesse que podem despertar as Memórias de João Daudt Filho. Vale a pena transcrever outros episódios, como antecipação do que significaria a reedição desse livro, uma das obras que realmente contam na bibliografia rio-grandense. Esta passagem, por exemplo:


Meu pai recebeu em pagamento de uma dívida antiga dois moleques: um preto e outro mulato. Fiquei íntimo dos moleques, que eram mais ou menos da minha idade. Prestavam-se a ser cavalos de meu andar, parelha de puxar a ajudavam-me a fazer urupucas, mundéus, esparrelas e alçapões para caçar passarinhos, e as gaiolas para prendê-los. Eu me julgava muito feliz em tão boa companhia. Aconteceu, porém, que, chegada a época de meu pai ir a Porto Alegre surtir-se de mercadorias para o seu negócio, quis levar-me a passeio. Os moleques também seriam para cuidar dos cavalos durante a viagem. Subi às nuvens de contentamento, pela companhia dos moleques. Chegados a Porto Alegre, tive porém um grande desgosto. Os moleques e eu fomos enganados! Papai não podendo ter em casa maior número de escravos, viu-se obrigado a desfazer-se deles (quer dizer, vendê-los). Chorei muito com eles quando nos despedimos.”


Finalmente, para encerrar os quadros de escravidão, este episódio estarrecedor: “Tudo isso não espanta em face da monstruosidade dos senhores para com as escravas suas concubinas e mães de seus filhos. Contou-me meu cunhado, general Joaquim de Andrade Vasconcelos, o seguinte: um pretendente à compra dos moleques, em conversa com um seu compadre, perguntou: ‘Onde poderei comprá-los em boas condições?’ Este respondeu: ‘Tenho aí o pátio cheio, pode escolher à vontade’. E o outro: ‘Mas não são seus filhos?’ A resposta: ‘Que tem isso? São meus escravos, poderei vendê-los. Custa-me caro a criação deles”.


Estes episódios, como tantos outros, (inclusive a lenda do “Negrinho do Pastoreio”, imortalizada por J. Simões Lopes Neto) contrariam, frontalmente, o mito da bondade do senhor de escravos do Rio Grande do Sul, criado por Saint-Hilaire, embora seja o naturalista francês, entre os viajantes estrangeiros que percorreram a nossa terra, no século passado, o observador mais atento, mais agudo, mais fidedigno e mais compreensivo.


Além de ser um valioso livro de memórias, gênero tão pouco cultivado entre nós, a obra de João Daudt Filho também se singulariza, do ponto de vista bibliográfico, pela circunstância de ter merecido três edições, todas publicadas por conta do autor, para distribuição fora do comércio. A primeira saiu em 1936, quando o autor se aproximava dos 80 anos de idade, sendo destinada apenas aos seus parentes e aos amigos mais chegados. O exemplar de que disponho fora ofertado pelo autor a Salatiel de Barros, que dele abriu mão, presenteando-me. Mais tarde o próprio Salatiel, homem da estirpe de João Daudt Filho, seguiu o exemplo de seu velho amigo, também escrevendo interessante livro de memórias, em parte formado pelas “reminiscências” que publicava no Correio do Povo, a que era muito ligado, como companheiro de Caldas Júnior e primeiro gerente do velho órgão.


O aparecimento das Memórias de João Daudt Filho despertou tanto interesse, dando lugar a tantas solicitações, que o autor teve de mandar imprimir mais duas edições, sempre por sua conta e distribuídas fora do comércio. Talvez seja o único caso, entre nós, em que um livro publicado fora do comércio chegou à terceira edição, pintando como best seller.


Receoso de cair no ridículo pela pobreza de imaginação e pelo estilo chão” – confessa o autor, sobre seus originais – “pedi a opinião de meu amigo Álvaro Moreira, escritor consagrado, respondendo ele que, além de lhe parecerem interessantes estas reminiscências, achava também exatamente que, na simplicidade e na naturalidade da linguagem, a mesma com que converso na intimidade, é que se encontrava o mais forte motivo para a sua publicação”.


Embora escrito sem literatura, como observou Álvaro Moreira, os originais de João Daudt Filho resultaram livro destinado a perdurar na bibliografia rio-grandense, mesmo porque faz parte de um gênero cujos valores fundamentais muitas vezes transcendem aos de natureza propriamente estética ou literária.


Depois de ter sido comandante do primeiro navio a vapor utilizado na navegação do Jacuí, entre cachoeira e porto Alegre, o pai de João Daudt Filho (pertencente à primeira geração de imigrantes alemães estabelecidos em São Leopoldo em 1824) radicou-se em Santa Maria, onde se estabeleceu como comerciante e constituiu família. Por isso, as primeiras recordações do memorialista datam daquela cidade, oferecendo subsídios de grande interesse para a monografia do município. Notadamente sobre o período revolucionário de 1893, a vida escolar e a infância e mocidade de Júlio de Castilhos (de quem o autor foi colega de curso primário), contendo, ainda, informações de real valia sobre as condições de vida em Santa Maria e no Rio Grande do Sul, naquela época.


Além de escrever o modo como se viajava no primeiro vapor a singrar as águas do Jacuí, João Daudt Filho narra uma viagem por terra, feita por ele e seus pais de Santa Maria a Rio Pardo. “Fizemos a vigem em 15 dias” – conta o memorialista – “numa carretilha puxada por três juntas de bois. A estrada era horrível a tal ponto que só mesmo com a força de meia dúzia de possantes bois poderia safar-se o veículo das sangas e atoladores. Outra meia dúzia de bois ia por diante, para muda. Uma tropa de 12 bois somente para conduzir a carga de uma pequena família”.


Na sua passagem como aluno pelo famoso educandário N. Sª da Conceição, dos Padres Jesuítas, em São Leopoldo, João Daudt Filho foi contemporâneo do episódio dos Muckers, de que relata a versão corrente na época. Já formado e estabelecido com uma farmácia, em Santa Maria, foi envolvido nas malhas da Revolução de 93, de que narra uma série de acontecimentos inconcebíveis para as atuais gerações. É quando o livro atinge o ponto culminante, sobretudo pelas cenas de banditismo que enumera e descreve, de uma das quais foi vítima o seu cunhado, Dr. Filipe de Oliveira, pai do poeta do mesmo nome, que nasceu órfão, seno adotado e criado por João Daudt Filho.


Trata-se enfim, de uma obra que vem pedindo para ser reeditada.



Capa: Tânia Porcher

Foto: Jorge Rolla


Fonte: Chamava-se Felicidade. Reverbel, Carlos. Barco de papel. Porto Alegre: Editora Globo S.A., 1978, p 182/186.


Disponível para aquisição: https://editoraufsm.com.br/assuntos/artes-e-letras/memorias-de-joao-daudt-filho.html

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