terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

Remembranças - Darcy Azambuja por Carlos Reverbel

 

Guardada a distância devida ao seu gênio literário, talvez já me encontre na situação em que se colocava Alcides Maya, quando dizia não passar “de um velho jornalista, com espaço franqueado para publicação de suas remembranças.”


Há palavras que me fazem evocar o velho Alcides, acreditando aconteça o mesmo com aqueles que leram seus livros e o conheceram de perto. Em geral, as palavras são como gado orelhano, não tem marca nem sinal. Mas o velho Alcides adonava-se de certas palavras, sentando-lhes a sua marca. Por exemplo: esta palavra remembrança. No vocabulário alcidiano, ganhava singular expressão, como se fosse sua.


Li outro dia nos jornais a notícia de que foi apresentada uma dissertação de mestrado sobre a obra de Darcy Azambuja. Então me ocorreram algumas “remembranças”, ligadas ao saudoso escritor, na sua feição humana, como pessoa.


Certa vez, entrando numa fila de cinema, estavam colocados na minha frente Darcy Azambuja e sua esposa, a querida dona Maria. Na época, ele ocupava o cargo de secretário do Interior, no exercício do governo do Estado. E apesar da alta investidura, ali se encontrava, pegando o seu cineminha, como qualquer cidadão comum. Depois de sessão do Cinema Rex, foi tomar chá na Confeitaria Central, recolhendo-se a pé para sua residência, uma casa modesta da Rua Jerônimo Coelho.


Recém chegado da Encruzilhada, sua terra natal, para ingressar na faculdade de Direito, o futuro autor de “No Galpão” (um clássico do nosso regionalismo literário, na mesma linhagem de J. Simões Lopes Neto) foi trabalhar como caixeiro da Casa Bromberg, pois sua família era apenas remediada, com poucos recursos para custear seus estudos em Porto Alegre. Tendo tirado, ainda como caixeiro, o primeiro lugar num concurso nacional de contos, convidaram-no para trabalhar no órgão oficial, “A Federação”, assim começando sua carreira como jornalista. Terminou-a como diretor do “Jornal da Manhã”, sucedendo a Fernando Caldas, fundador do jornal.


Passados alguns anos, convidaram-no para editorialista do “Correio do Povo”, em substituição a Edgar Schneider, que fora eleito deputado federal, fixando residência no Rio. Disse-me que aceitara o convite, mas pediria alguns dias de prazo para iniciar o serviço. Nesse meio tempo, mandou me chamar:


- “Quero que me acompanhes na visita que vou fazer ao dr. Breno, para agradecer-lhe a distinção e dizer-lhe que fiquei honrado mas não posso aceitar.”


E segredou-me o verdadeiro motivo de sua desistência: “Se for trabalhar no jornal, perderei os três meses de férias na Faculdade, talvez a única vantagem de ser professor.”


Esses três meses ele os vivia numa pequena casa em Ipanema, trocando-a, mais tarde, por um apartamento em Torres, situado num bloco arquitetônico que recebeu o apelido de Vila do IAPI, o que bem demonstra a modéstia da construção. Fomos condôminos nesse edifício. E então pude frequentá-lo diariamente, admirar a simplicidade de sua vida, a finura de suas maneiras e, sobretudo, o relacionamento perfeito com a esposa. Eram duas pessoas num só coração. De temperamentos tão diferentes, nem isto alterava o convívio harmonioso, o companheirismo, a delicadeza e a doçura do casal, no aconchego da mútua dedicação.


Homem de grande saber, com uma obra literária e uma posição universitária eminentes, Darcy Azambuja apresentava traços, na sua modéstia e singeleza, de algumas de suas personagens, aquelas em que se reflete a alma simples da boa gente camponesa. Tomador de mate amargo e pitador de fumo crioulo (como o grande Augusto Meyer), parecia um velho chiru galponeiro.


Contrariamente ao que em geral se verifica entre escritores, não promovia sua carreira, nem preparava a sua glória. Uma vez desencavei, em velho almanaque da Livraria do Globo, um de seus melhores contos, reproduzindo-o na “Província de São Pedro”. Ele não se lembrava de ter escrito e publicado esse conto, ficando muito grato pela minha “descoberta”. E outra vez, estando em minha casa, de visita, ficou meio perplexo pelo fato de eu colecionar, em duplicatas, as primeiras edições de seus livros regionalistas. Ele não conservava nenhuma.


As poucas vezes em que saiu do Rio Grande do Sul foi para integrar bancas examinadoras em concursos para a cátedra superior, em outros Estados. A província lhe bastava, embora nada tivesse de provinciano. Recebeu a vida inteira, de seu livreiro parisiense, as novidades literárias, filosóficas e jurídicas que lhe interessavam.


Refugiava-se em casa, fechando-lhe as portas ao mundanismo e às exteriorizações da vida literária, não aos seus alunos a aos seus amigos. E tendo sentimento religioso, não precisava ir à igreja, poia a levava dentro da alma.


(Janeiro, 1979)


Capa: Jairo Devenutto

Fonte: Reverbel, Carlos. Saudações Aftosas. Porto Alegre, Martins Livreiro, 1980, p. 89/91.

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