domingo, 26 de fevereiro de 2023

Um inglês e o trem (Carlos Reverbel)

Um dia desses tive de acompanhar um inglês em viagem pela nossa campanha. Era um gringo de aparência rabicunda e porte avantajado. A olho, dei-lhe dois metros e pico. Até aí, nada de extraordinário. O espanto apareceu quando assentei o olhômetro na direção dos pés do vivente. Calçava sapatos 54, conforme ele próprio me informaria, ali pelo Pantano Grande.


A viagem ia correndo linda no mais, até começar a chover canivete aos baldes. Os raios caiam guaxos e acolherados. Santa Bárbara! São Jerônimo! E era água que Deus mandava. Não podia ser diferente: ficamos ilhados numa estância na costa do Ibicuí da Armada.


Os percalços não foram poucos, já se vê. E o inglês sempre firme, tirando tudo de letra, na maior desportividade. Só uma coisa o preocupava: ficar retido naqueles confins, perdendo a reunião com o ministro Cirne Lima, a que devia comparecer no dia seguinte, em Porto Alegre. Negócio grande, de importação de gado. Por sinal South Devon, a melhor raça europeia para cruzar com as zebuínas.


De carro não dava para sair. “Mas não seja por isso”, disse o fazendeiro. E providenciou na nossa remoção, a cavalo, até uma estação ferroviária, situada nas circunvizinhanças, coisa assim de três léguas de beiço, isto é, das grandes. Tocou para o inglês um pingaço baio cabos-negros, marca do Dr. Oswaldo Carlos de Oliveira Souza. No trote chasqueiro e alguma galopeadita daria para pegar o trem noturno na estação São Lucas. “Thank you, very much”. Era o inglês agradecendo, no soflagrante da despedida, a famosa “hospitality” gaúcha.



Por volta das 11 p.m. (como dizem os britânicos) apareceu o trem noturno se desmantelando e botando os bofes pela janelinha do maquinista, na falta daquelas provectas chaminés marca Maria Fumaça, de saudosa memória. Como manda a pragmática, vinha com umas duas horas de atraso. Na plataforma da estação cabia apenas a locomotiva, o bagageiro, o carro de segunda e o carro-boteco, por alcunha restaurante. O grosso da composição ficou estendido ao longo da linha, com os degraus de cada vagão lá em cima, longe do chão.


Fazia uma noite de breu, dessas de até vaga-lume errar o caminho e perder a direção do voo. A eletrificação rural que servia à estação era representada por um liquinho, que bruxuleava, qual vela de sebo melhorada, a uns 80 metros do vagão-evereste que tínhamos que escalar, praticando alpinismo na escuridão do pampa. E o inglês comendo tudo em tranca, aguentando tudo no osso do peito, na desportividade de sempre. Tudo para ele estava “very, very good”. E só tirava o cachimbo da boca para dizer OK.



Não seria por falta de ponto de apoio nos seus pés tamanho 54, mas o caso é que, ao escalar o vagão, qual jovem audaz do trapézio volante, o patrício de Sir Winston Leonard Spencer Churchill errou de degrau, recebendo em consequência um rasgão de palmo na calça de flanela branca e um talho de bom tamanho na canela esquerda. Quando chegamos na cabine que havíamos conseguido, engraxando as unhas do camareiro no unto de opípara gorjeta, o imperturbável britânico estava em petição de miséria, mas o seu moral continuava o mesmo, “very, very good”.


Como é de bom tom, logo assumi ares de “gentleman” e fui me apossando com desenvoltura do leito de cima, mesmo porque o meu companheiro, já desastrado na primeira, não estaria em condições de praticar nova acrobacia. O inglês ficou no leito inferior, menos sacolejante. E depois de procurar acomodar-se o melhor possível, não teve outro jeito senão optar pela clássica posição ginecológica. Instalou-se de barriga para o ar, mãos cruzadas na nuca, joelhos soerguidos, pernas abertas em leque, olhos piscos e pervagantes. Experimentou diversas posições (inclusive o decúbito dorsal), mas foi a ginecológica a única que lhe permitiu caber dentro do leito, uns 30 centímetros mais curto do que a sua simpática e avantajada pessoa. E assim fez todo o percurso, chegando ao seu destino (aliás, o nosso), de peito aberto e camisa arremangada, pois estava fazendo um calor de rachar, embora o dia anterior fosse de rigoroso inverno. Mas o inglês não parava de repetir: “Your climate, very, very good”.


Ia esquecendo: antes de despedir-se ele declarou que iria primeiro ao Pronto Socorro, para tomar uma antitetânica tamanho-família, recolhendo-se depois ao City Hotel, para espichar as “legs”.


Tenho para mim que este pequeno episódio ferroviário constitui uma das melhores demonstrações de subdesenvolvimento que poderíamos ministrar a um estrangeiro. Resolvi contá-lo depois que li umas declarações em que o responsável pelo setor, no Rio Grande do Sul, diz não ser da competência da ferrovia o transporte de passageiros para o interior do Estado.


Diante disso e depois disso, como dizia o Conselheiro Rui Barbosa nas suas perorações, talvez seja o caso de transferir-se o problema ferroviário para a área da respeitável matrona assaz conhecida como vó do Badanha.


(Maio, 1979)



Capa: Jairo Devenutto

Fonte: Reverbel, Carlos. Saudações Aftosas. Porto Alegre, Martins Livreiro, 1980, p. 40/42.


Crédito Fotos:

Ruínas da estação de São Lucas em 2005. Foto Daniel Taschetto

http://www.estacoesferroviarias.com.br/rs_uruguaiana/fotos/slucas051.jpg


Pátio de São Lucas em 2021. Foto Augusto Taschetto

http://www.estacoesferroviarias.com.br/rs_uruguaiana/fotos/saolucas0211.jpg


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