sexta-feira, 17 de março de 2023

A gota (Carlos Reverbel)

 

Fui aquinhoado, nesta altura dos acontecimentos, com uma crise aguda de gota. Logo às primeiras ferroadas da doença, recorri ao dr. Jorge Pereira Lima. Por via das dúvidas, aguardei-o preparado para o pior.


O grande médico chegou e lascou o diagnóstico de supetão, na base do que antigamente se chamava olho clínico: “Isto é gota, meus parabéns”.


Recebi, posteriormente, diversas e efusivas demonstrações de distinto apreço e alta consideração. A gota, segundo a tradição britânica, é uma doença aristocrática e de origem vitoriana, conferindo aos seus eleitos foros de alta dignidade heráldica.


O Júlio Duarte, na sua notória condição de velho gotoso, não tardou a oferecer os seus valiosos préstimos, garantindo-me que não haverá necessidade de cortar a cerveja. E o Rivadávia Souza (cuja gota é de origem gaulesa, portanto atípica), dirigiu-me de Brasília a seguinte mensagem telegráfica: “Parabéns teu ingresso nosso clube”.


Tive a confirmação de que o referido clube existe ao receber, ainda acamado, a visita do Milton Baggio, vindo especialmente de Bom Jesus para congratular-se com o meu ingresso na ilustre confraria. Por sinal, o Milton é detentor de um privilégio: foi acometido pela doença aos 20 anos de idade, coisa muito rara na literatura médica. Seria como se o Pequeno Príncipe, de Saint-Exupéry, sofresse do mesmo mal.


Também recebi presentes, graças à providencial gota, vulgo edema localizado junto à articulação metatarso-falangeana do dedão do pé, ou primeiro dedo, segundo os anatomistas. O presente mais apreciado veio da Ivete Brandalise: um livro que pertencera à biblioteca que vendi em 1947. Encontrando-o num sebo, a admirável cronista teve a nímia gentileza de recuperá-lo, pelo que serei eternamente grato.


Por falar em livro, sou dos que acreditam, por experiência própria, na terapêutica leitura. Posso garantir, por exemplo, que os cinco alentados volumes das memórias de Gilberto Amado são um porrete para úlceras duodenais. E nada melhor para aplacar as lesões pulmonares de primeiro grau do que a “Guerra e Paz”, de Tolstoi, na edição da Bibliothèque de la Pléiade, mas desde uma vez que o paciente também recorra aos cuidados do abalizado dr. Palombini, pois o seguro morreu de velho, segundo o Leão do Caverá.


Desta vez, nesta gota, descobri que Lima Barreto é excelente coadjuvante para a cura clínica da torturante enfermidade. Faço a afirmativa com a tranquilidade de quem debulhou a obra completa do grande escritor, nos 17 volumes organizados para a Editora Brasiliense por Francisco de Assis Barbosa, com a autoridade de quem, escrevendo a biografia do autor das “Recordações do escrivão Isaías Caminhas”, produzira uma obra perfeita.


É impressionante a atualidade de Lima Barreto. Num de seus romances – “Numa e Ninfa” – foi criada e entregue a um charlatão russo – o dr. Bogóloff – uma Estação Experimental de Reversão Animal e Quadruplicação dos Bois. Propunha-se o impostor adotando processos baseados na bioquímica, produzir porcos do tamanho de bois e bois do tamanho de elefantes. Propunha-se ainda, injetando gens de uma em outra espécie, produzir cabritos que eram ao mesmo tempo carneiros, e porcos que eram cabritos ou carneiros, à vontade.


Já tendo assinado em sua gestão 2.727.832 decretos, 78.345 regulamentos e 1.725.384 avisos, o titular da Agricultura, ministro Xandu, assinou novo ato, aprovando o projeto do dr. Grégory Petróvitch Bogóloff e promovendo-o a diretor da Pecuária Nacional, com o que se deu por muito satisfeito, jamais cobrando do charlatão eslavo a prestação dos serviços a que este se propusera. Como ainda hoje acontece com os “bogóloffs” brasileiros.



(Agosto, 1979)




Fonte: Reverbel, Carlos. Saudações Aftosas. Porto Alegre, Martins Livreiro, 1980, p. 50/51.



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