sexta-feira, 17 de março de 2023

Nostalgia do Percevejo (Carlos Reverbel)

 


As novas gerações já andaram transando (uma boa) com o popular piolho, pois tem surgido, ultimamente, alguns surtos do parasito, mas continuam ignorando, por completo, o saudoso percevejo, cujo desaparecimento parece definitivo, talvez com graves consequências ecológicas e sérios prejuízos ao meio ambiente.


Alimento a firme convicção de que o desaparecimento do percevejo aconteceu por obra e graça de uma fatalidade histórica, pois se dependesse dos fabricantes de inseticida ele jamais teria sucumbido.


O raciocínio que conduz a esta óbvia conclusão não pode ser mais singelo e elementar. Se os inseticidas tivessem o poder de erradicar os parasitos (e as pragas), ficariam sem mercado e seus fabricantes iriam à falência. Logo, a erradicação estragaria o negócio, assumindo as catastróficas proporções de verdadeiro haraquiri empresarial, conforme a técnica usada pelo ator Charles Boyer no filme “A Batalha”, baseado no encantador romance de Claude Farrère, um “best-seller” da “belle époque”.


Por esse e outros motivos, igualmente cartesianos, nunca deixei de acreditar, apesar de agnóstico, na imortalidade do carrapato. Sendo o referido parasito um alto negócio, é evidente que os fabricantes de carrapaticida não permitirão o seu extermínio. Seria como pretender que os fabricantes de armas criassem asas e se transformassem em arcanjos e serafins, tendo como primeira prenda a Pomba da Paz, de Picasso, hoje a serviço da Anistia internacional, com assistência jurídica da Ordem dos Advogados do brasil.


Carregar um banheiro de carrapaticida, nesta altura do século, custa os olhos da cara. Aliás, o preço desse e outros insumos, não sendo tabelado, enquanto a carne o é, terminou cooperando, com notável desenvoltura, para a crise da pecuária, o que veio resultar na escassez do produto e, naturalmente, no seu encarecimento, mesmo porque o boi ainda não recebeu poderes para revogar a lei da oferta e da procura.


O gigolô do boi não é mais o fazendeiro, tendo as multinacionais passado a exercer, com raro brilho, essa cômoda e honrosa função, através do carrapato, da aftosa, da sarna, da verminose e outras ambrosias com que se alimenta Mercúrio, deus dos lucros e perdas, do deve e haver, dos juros e correção monetária, quiçá do próprio Dr. Delfim.


Mas o caso é que o percevejo desapareceu, há coisa de uns 30 anos, conforme tenho anotado no meu canhenho de algibeira. E, por incrível que possa parecer, na encruzilhada existencial em que me encontro, vergado ao peso de tantos anos idos e vividos, chego a sentir nostalgia até mesmo do percevejo, associando-o à primavera da vida, isto é, à famosa “idade do serrote”, de que fala Murilo Mendes.


Uma vez, por volta de 1936, o jornal me mandou fazer uma reportagem num vilarejo chamado Cotiporã, então segundo ou terceiro distrito do município de Bento Gonçalves. Foi a primeira (e última) vez na vida em que comi carne de paca, iguaria que gostaria de oferecer, se ainda existissem pacas, ao dr. Antônio Mazzaferro, único “gourmet” de minhas relações gastronômicas, depois que o Armando coelho Borges fixou residência na Pauliceia Desvairada.


Após essa revelação culinária, o hotel em que me hospedei em Cotiporã, naquela ocasião, proporcionou-me outra revelação, por sinal de gênero completamente diferente: o percevejo paraquedista.


A infestação do quarto pelo parasito era total, começando na cama, esparramando-se pelas paredes e atingindo o teto. Quando descobri que os percevejos domiciliados no forro do aposento se atiravam lá de cima, como exímios paraquedistas, caindo sobre o meu leito, na elegante postura de jovens audazes do trapézio volante, naturalmente influenciados pelo romance de William Saroyan, fiquei literalmente apavorado, deixando naquela noite de entregar-me aos braços de Morfeu, como tinha direito, depois de um dia trabalhoso na faina da reportagem que começara a preparar.


Então saí para fora, mergulhando na escuridão do vilarejo. Pro sorte era uma noite de sábado, embora tisnada de breu e outros ingredientes de bruxaria. Para encurtar a história direi que, depois de alguns trancos e barrancos, terminei deparando com enorme barracão, onde a sociedade do local e adjacências realizava animado baile, na base do acordeão, do vinho colonial e da linguiça calabresa.


Sem qualquer prevenção contra o tresnoitado viandante, deixaram-me penetrar no ambiente. Foi nessas circunstâncias que conheci o Artur Lourenço de Faria Rimoli, então caixeiro-viajante, hoje destacado integrante do tubaronato porto-alegrense. Como acontece de vez em quando, encontramo-nos outro dia na Rua da Praia. E ele foi logo convidando, na sua desmedida gula:


- Vamos ao Restaurante do Rocco “mangiare” uma linguiça calabresa, em memória daquela que comemos no baile de Cotiporã.”


(Janeiro, 1979)




Capa: Jairo Devenutto


Fonte: Reverbel, Carlos. Saudações Aftosas. Porto Alegre, Martins Livreiro, 1980, p. 99/101.

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