Fui possuído hoje, logo após o café da manhã, por súbita nostalgia das estradas carroçáveis. Tanto as guardo na memória involuntária, no aconchego das melhores recordações, que elas acabam de alçar voo nesta clara manhã setembrina, mas conhecendo tão bem o caminho de volta quanto as pombas de Raimundo Corrêa, é certo que ao entardecer retornarão ao ninho antigo.
Havia um médico em São Gabriel que, ao ser chamado ao interior do município, despachava um próprio na frente, investido da missão de depositar garrafas de cerveja nos riachos e sangas por onde ele deveria passar a caminho da casa do cliente. A mesma providência era adotada para a viagem de volta, completando-se, assim, a engenhosa operação que o referido facultativo chamava de “medicina de campanha, com cerveja fresca de ida e volta”. Enquanto os cavalos tomavam um fôlego, ele tomava suas cervejas à sombra de angicos, guajuviras e outras árvores extintas. Tudo com mansuetude e calma, tanto na ida como na volta.
Começada na era da tração animal, essa maneira de amenizar os sacrifícios do sacerdócio médico prolongou-se até a época do Ford de bigode (quando as estradas ainda eram carroçáveis), só terminando com a chegada da era do asfalto e, coincidentemente, com o falecimento do introdutor (já muito idoso) da mencionada amenidade clínica.
Ainda no tempo das carruagens deu-se o caso de um fazendeiro, natural de Lavras mas residente em Bagé, ter de permanecer diversos dias em porto Alegre, em afanosas atividades peruaríssimas. Necessitando ir diariamente a um matadouro situado nas redondezas da capital, o nosso estancieiro teve de contratar um carro de praça. O carro não era dos piores, mas a parelha que o puxava era de fazer dó, sendo formada por velhos matungos.
Em compensação, o boleeiro não podia ser mais prestativo e diligente. Caprichava tanto na prestação de seus serviços que o fazendeiro, embora tido e havido como sujeito empedernido, prometeu dar-lhe de presente uma linda e fagosa parelha de cavalos baios, para substituir seus velhos e trôpegos matungos.
De volta aos pagos, a primeira providência do fazendeiro não foi mandar os cavalos baios, foi esquecer a promessa que fizera ao cocheiro porto-alegrense. Mas este não se esqueceu e começou a bombardeá-lo com sucessivos telegramas, reclamando o presente. E nada de resposta.
Até que um belo dia o fazendeiro resolveu encerrar o assunto, transmitindo ao cocheiro este telegrama;
“Parelha baio morreu raio.” (O pelo dos animais foi colocado no singular pelo telegrafista para facilitar a rima).
Li domingo passado, no Sérgio da Costa Franco, a notícia de que a Companhia União de Seguros, sob a feliz inspiração de seu diretor, Lauro Guimarães, tomou a iniciativa de promover a reedição de uma série de obras raras da bibliografia rio-grandense, a começar pelas fundamentais “Memórias Econômico-políticas”, de Antônio José Gonçalves Chaves.
A propósito, tenho para mim que as “Memórias”, de João Daudt, reúnem todas as condições para serem incluídas na projetada coleção. Dentro de sua época, não sei de obra mais interessante, no gênero, que tenha sido publicada entre nós. Já a percorri duas vezes e sou capaz de repetir a dose.
O autor viveu numa época em que todas as estradas gaúchas eram carroçáveis. Entre outras, descreve uma viagem fantástica, feita de carreta, por ele e sua família, de Santa Maria a Rio Pardo, em cujo porto tomaram o primeiro barco (“moderno e a vapor”), empregado na navegação do Jacuí, entre Porto Alegre e Cachoeira.
Os barcos eram “modernos e a vapor”, mas as estradas ainda eram carroçáveis. Isto empresta grande interesse à narrativa, em relação aos dias de hoje, quando as rodovias se modernizaram e as águas dos nossos rios regrediram, estranhamente, à época das estradas carroçáveis.
(Setembro, 1977)
Fonte: Reverbel, Carlos. Saudações Aftosas. Porto Alegre, Martins Livreiro, 1980, p. 77/78.
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