sexta-feira, 17 de março de 2023

A ilha (Carlos Reverbel)

 


No ano de 1934, a gente podia ser pobre em Florianópolis. A vida era quase de graça. Com 200 réis, preço de um cacho de bananas, o estômago ficava apascentado por uma semana. Devia ser por causa dessa fruta que não havia mendicância na cidade.


O meu trabalho era num jornal, “A Pátria”, dirigido pelo dr. Gil Costa, desembargador aposentado. Um dia eu lhe entreguei um texto cheio de adjetivos. Então ele me disse: “Meu filho, corta os adjetivos. Nesse jornal trabalhamos à base de substantivos e verbos.” E ensaiou um trocadilho: “Embora a verba seja curta, como estás cansado de saber”.


Só voltei a usar adjetivos quando mudei de jornal, indo para o “Correio do Estado”, de Flávio Bertoluzzi de Souza, um barriga-verde que um dia sumiu, reaparecendo trinta anos depois como prefeito da fidalga cidade de Petrópolis. Sendo ele também fidalgo, terminou no lugar certo.


Superada a fase aguda da banana, comecei a frequentar restaurantes populares, quase sempre o Recreio dos Marujos, casa de pasto especializada em frutos do mar e alguns pratos portugueses, sendo de notar que em Florianópolis, naquela época, o peixe era comida de pobre, assim como o camarão e outras dádivas do velho mar.


O velho Cirilo, amigo da turma do jornal, exercia com generosidade e grossura as funções de garçom do estabelecimento, abrindo créditos a certos fregueses por sua conta e risco. Eu chegava, aboletava-me na mesa coletiva e ia pedindo sopa de camarão ou ensopado de peixe ou tainha assada ou um caldo verde, verdinho, coisas nessa base. Muito autoritário e preocupado com minha magreza e o excesso de cerveja Cascatinha, o rústico e bondoso Cirilo mudava por sua conta o pedido, trazendo-me um tracanaz de carne de zebu, ainda por cima malpassada. E ainda me advertia, fingindo brabeza: “Vê se toma jeito, rapaz. Precisas te fortalecer, curar essa tosse.”


Um dia fui passear na Ponte Hercílio Luz, em companhia de uma funcionária da pensão da dona Zoé, de nome Narinha, quando aconteceu de um cidadão que andava por ali atirar-se de ponta cabeça no oceano Atlântico. Eu ainda não sabia, mas era costume do lugar, usar-se a majestosa obra de arte como trampolim para o destemido salto da morte. Fui cientificado mais adiante que um desses acróbatas deixara um bilhete que terminava de forma singela: “Adeus, Graziela”. A presença na cidade da festejada declamadora Graziela Passos da Fonte foi mera coincidência, nada tendo a ver com o tresloucado gesto.


A ilha era ligada ao continente pela Ponte e ao resto do mundo por vapores e hidroaviões, duas ou três vezes por semana. Os enormes pássaros metálicos (como então se dizia), pousavam de barriga na baía e ficavam balançando no fulgor azulado das águas maneiras. Eram agraciados, às vezes, com a pantomima marinha executada por botos de vocação circense ali aquerenciados.


Quando apareciam, os navios do Lóide e da Costeira ancoravam ao largo e se quedavam algumas horas, olhando a cidade de fogos acesos, prontos para o cerimonial da partida. Apesar da Ponte e desses ocasionais meios de transporte o isolamento da ilha não a deixava progredir e nisso residia, no consenso da população, o seu maior encanto. Certo dia o hidroavião enguiçou, ficando os passageiros retidos na cidade. Entre eles figurava o dr, Antônio Guerra Flores da Cunha. Fui ao hotel entrevistá-lo, mesmo porque eu tinha dado com os costados em Florianópolis graças a uma passagem no “Comandante Capela”, que me havia sido alcançada (via Ezequiel Maristany Júnior, agente da Costeira), por intermédio de um de seus irmãos, o meu velho e querido amigo Lelinho Flores da Cunha.


A gente passava na rua por uma pessoa bonita, ia ver era da família Luz. Além da Ponte, o famoso dr. Hercílio deixou numerosa descendência com marca registrada: a beleza repartida equitativamente entre filhos e filhas, netos e netas. Dizem que a tradição continua, já agora na quarta ou quinta geração.


Havia uma professora negra que ensinava português na Escola Complementar e publicava aos sábados um rodapé no “Estado”, o órgão tradicional da cidade, se não me engano ainda em circulação. Assinava-o com um pseudônimo: Maria da Ilha. Fui visitá-la algumas vezes, atraído pela graça de seu estilo e pela finura de sua sensibilidade. Para o meu gosto era quem escrevia melhor na imprensa catarinense de então. Se for viva (pelo que faço votos), deve estar bem velhinha, pois já naquela época não cozinhava na primeira fervura. Ainda vou a Florianópolis reler na coleção do “Estado” os rodapés de Maria da Ilha.


Na ocasião eu tinha uma camaradinha chamada Nilva que trabalhava no armarinho do seu Aristeu, mas não gostava de ser balconista, tinha a mania de escrever um diário e de tornar-se professora, como a “Maria da Ilha” acentuava, na sua fala cantava. Levei-a um domingo, a seu pedido, à casa do desembargador Gil Costa, homem de grande doçura e infinita bondade, embora surdo como uma porta, humanista emérito e encarniçado como buldogue nas suas vigílias cívicas e lutas partidárias. Atendendo-a, o desembargador consegui-lhe matrícula na Escola Complementar e ainda lhe arranjou um emprego melhor, com tempo para frequentar as aulas da Maria da Ilha. Guardei no coração a frase que ele diria, a propósito do seu gesto: “Com boa bondade a gente consegue mudar o destino das pessoas.”


Já tinham me prevenido na redação sobre um beletrista que era portador do Mal de Hansen e costumava procurar os recém-chegados à cidade, pois todo mundo o evitava na sociedade local. O pobre homem não demorou a aparecer, tomando a direção da minha mesa, de mão estendida. Por sorte a mesa ficava perto da janela. Então me fiz de louco e pulei a janela, pois naquele tempo a concepção a respeito da lepra era tão errada e desumana como na Idade Média. De noite tive um bruto pesadelo e ninguém para me amparar empregando a técnica do cafuné.


As reportagens foram muitas, figurando entre elas a da passagem do Graf Zeppelin sobre a Ponte Hercílio Luz, cujo flagrante foi fotografado e transformado em lindo cartão postal. Lembro-me de um camelô amigo, o Aristides, dono do lagarto Juquinha, ter comparado o impotente engenho voador com um charuto pouco maior que os consumidos pelo senador Ivo d’Aquino. Mas a reportagem que mais me tocou foi sobre uma mocinha chamada Nazaré que trabalhava na loja de um turco chamado Agapito e que ateou fogo às vestes por motivos ignorados. Mesmo assim cometi o sacrilégio de querer fazer graça, dizendo na reportagem que Agapito não era nome de se botar em turco, o que podia ser a pura verdade, mas não era para ser dita naquelas circunstâncias.


Segundo minha experiência de repórter policial, nos tempos heroicos do jornalismo romântico, as moças bem nascidas da então chamada alta sociedade nunca tinham ideia de atear fogo às vestes, mas as gurias do povo e, por fatalidade, geralmente as mais bonitinhas, eram muito chegadas a tais provas pirotécnicas, o que para mim constitui até hoje um dos chamados enigmas do universo.


(Fevereiro, 1979)




Fonte: Reverbel, Carlos. Saudações Aftosas. Porto Alegre, Martins Livreiro, 1980, p. 54/56.



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