O Dr. Joaquim Tibúrcio de Azevedo estava fazendo a barba no Salão Brasil. Como era de seu costume, chegou ao estabelecimento às primeiras horas da matina. Enquanto escanhoava o ilustre causídico, o popular Galdino Franco, novidadeiro como todo bom fígaro, colocava-o ao corrente dos últimos acontecimentos.
Eis senão quando, o sossego da Rua da Praia é sacudido por diversos estampidos de armas de fogo, disparados dentro do prédio fronteiro, uma conceituada Casa de Câmbio. O Dr. Tibúrcio, metade da barba feita e a outra metade por fazer, mas já devidamente ensaboada, precipitou-se da cadeira, ganhando a rua, no que foi seguido pelo seu trêfego barbeiro.
Ainda deu tempo para ambos assistirem a retirada de quatro indivíduos de feições eslavas que, trajando a caçador, “empunhavam pistolas fumegantes, tipo Browning”. Na Casa de Câmbio, local do insólito episódio, jazia crivado de balas o corpo de infeliz “rato branco”.
De linha estendida, os atiradores desapareceram na esquina da Rua do Comércio, dirigindo-se para a Praça 15 de Novembro, onde tomaram um carro e obrigaram o boleeiro a conduzi-los, a toda a brida, para lugar incerto e não sabido.
Na disparada, quando alcançava a Praça Visconde do Rio Branco, o carro atropelou uma carroça, não por imperícia do boleeiro, mas em razão do estado de pânico de que fora possuído, pois a corrida de que era protagonista parecia, na sua vertiginosa andadura, com as disputas de diligência em filmes de “far-West”. No acidente, pereceu um dos cavalos de tiro, com a verilha atravessada pelo varal da carroça.
Sempre empunhando suas armas automáticas, os fugitivos abandonaram a desastrada carruagem e prosseguiram a pé, somente se detendo na frente da usina da Cia. Força e Luz, uns três quarteirões além do teatro dos acontecimentos. Foi quando apareceu, providencialmente, um bonde Navegantes, que vinha para o centro da cidade, cheio de “ilustres passageiros”, inclusive o “belo tipo faceiro” de que fala a famosa quadrinha publicitária.
Concluída num abrir e fechar de olhos a operação de ocupação do bonde, o motorneiro foi obrigado a fazer cara-volta, enquanto alguns passageiros conseguiram despencar-se do veículo pelo caminho, sofrendo pequenas fraturas e escoriações generalizadas. Os fugitivos trocavam entre si, de longe em longe, palavras arrevezadíssimas, numa língua de trezentos diabos.
Chegados ao fim da linha, em tempo recorde, fizeram baldeação para uma carroça de leiteiro, o único veículo que ali se encontrava, naquela maldita hora. Por coincidência, evolavam-se pelas janelas de uma residência, situada no bucólico fim-de-linha, os acordes do “Maldito Tango”, dedilhado ao piano por gentil donzela.
O leiteiro, que atendia pelo nome de Mateus Borato, não teve dúvidas em desvencilhar-se dos seus tarros de leite (aliás “batizados” numa sanga das redondezas), cedendo lugar, na sua pequena carroça, aos inquietos e inquietantes fugitivos. Amontoados no veículo, mandaram tocar, através de gestos de expressiva mímica, para a várzea do Gravataí, onde desembarcaram, embrenhando-se nos brejos e matagais que ainda a revestiam, ecologicamente. Estando-se na plenitude de outubro, havia florada na várzea, com generosa colaboração dos maricás, unhas-de-gato, espinilhos e corticeiras.
A todas essas, o Dr. Tibúrcio e o barbeiro Galdino já haviam comunicado a ocorrência às autoridades. Incontinente, um destacamento da Brigada Militar e outro da Guarda Civil, este constituído pelos chamados “ratos brancos” (aliás, de saudosa memória). Marcharam para a várzea do Gravataí, tendo como “guia Lopes” da expedição o leiteiro Borato, tão compenetrado de sua missão quanto o legendário vaqueano da Retirada de Laguna.
Embora tresnoitado, o repórter Mário Cinco Paus já estava a postos, tendo rumado, num cabriolé de duas rodas e capota móvel, para a zona de perigo. O popular repórter, tipo pernalta e de nariz adunco, ia preparado para tudo embora não envergasse indumentária de campanha. Não se separara, sequer, da velha picareta (já abaiada pelo uso) nem da longa bengala de junco, com as quais dava o toque pessoal na sua desataviada indumentária.
Por sua vez, o orador popular Carlos Cavaco fizera inflamados discursos pelas esquinas da Rua da Praia, concitando o povo a tomar parte ativa na caçada humana. Formou-se logo um contingente de voluntários, que também tomou o caminho da várzea do Gravataí, aos gritos de: Lincha! Lincha!
Os bandidos não tardaram a ser encontrados e cercados pela tropa, escapando, assim, do linchamento. Talvez tenham tido melhor sorte, mas ficaram iguais a paliteiros, tendo recebido, em média, cerca de trinta tiros “per capita”.
Os quatro cadáveres foram colocados num carroção, que desfilou pelo centro da cidade, a fim de que a população aplacasse a ira de que estava possuída por causa do movimentado latrocínio. Depois, ficaram expostos à visitação pública, num casarão situado entre as ruas Clara e do Arroio.
No dia seguinte o prof. Anes Dias ministrou uma aula de Medicina Legal em meio aos cadáveres. “Entre os estudantes presentes – conta Hernani de Irajá, em suas memórias – Batista Luzardo destacava-se pela curiosidade com que procurava esmiuçar as regiões atingidas pelas descargas”.
O assalto à Casa de Câmbio foi praticado em 1911, por quatro imigrantes russos que haviam desembarcado em Porto Alegre como agricultores, mas resolveram desistir da lavoura, antecipando-se numa atividade que terminaria virando coisa de rotina e sem maiores consequências.
(Outubro, 1979)
Fonte: Reverbel, Carlos. Saudações Aftosas. Porto Alegre, Martins Livreiro, 1980, p. 28/30.
Crédito imagem Mário Cinco Paus: https://encrypted-tbn0.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcR1aQpyisu5p3-91pT5PFZAHjgf_zt_vY8sp1socApkg2FscbD5SD17ext3XEganVs1lZw&usqp=CAU
Acesso 17/03/2023
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