sexta-feira, 17 de março de 2023

Ardil contra Rui (Carlos Reverbel)

 

Encontrei um escritor muito agastado por causa dos erros de revisão com que apareceu seu último livro. Surpreendi-o numa livraria, de esferográfica em riste, fazendo correções nos exemplares ali colocados à venda.


Suponho que vai percorrer, na sua via-sacra autoral, todas as casas do ramo, hoje acrescidas de alguns supermercados. Talvez fosse menos cansativo recolher a edição, mas não ousei apresentar-lhe a ideia. Não se podia prever do que será capaz um beletrista em tais circunstâncias.


Pelo trabalho braçal de que fui espectador, este encontro de livraria me colocou frente a uma atitude nova na vida literária. Os autores costumam, quando muito, corrigir falhas tipográficas, de próprio punho, nos exemplares destinados aos críticos. E, às vezes, procedem do mesmo modo, como deferência em relação a amigos.


Guardo um livro de Gilberto Amado, cravejado de emendas feitas pela mão do notável escritor. E ainda outro dia recebi “O contrabando no sul do Brasil”, de Guilhermino Cesar, com diversas correções e alguns acréscimos manuscritos, reproduzindo palavras que a linotipo havia devorado, com apetite antropofágico.


Não chegarei ao ponto de fazer o elogio do erro de revisão, mas não esqueço que um dos livros mais interessantes que li, parece que esqueceram de fazer a revisão, tal a mixórdia tipográfica em que foi apresentado. Refiro-me a “Se não me falha a memória”, de Joaquim de Sales, um mineiro que fez jornalismo político no Rio, em alto nível, e terminou como deputado federal pelo seu Estado. Não sei de outra obra em que tenha refletido, com tanta expressividade, a vida parlamentar da chamada República Velha, retratada através da atuação dos grandes nomes que passaram pela Câmara e pelo Senado, no período compreendido entre a primeira constituinte republicana e a Revolução de 30.


De Germano Hasslocher, hoje nome completamente esquecido, mas que foi das figuras mais singulares da política rio-grandense nos tempos de Pinheiro Machado e Júlio de Castilhos, conta Joaquim de Sales um episódio que dá a medida não só da argúcia, como da eloquência e do preparo de que era dotado aquele parlamentar gaúcho.


A grande dor de cabeça de Pinheiro Machado, na época que antecedeu a Campanha Civilista, era encontrar um nome no parlamento que estivesse à altura de responder os ataques e as críticas de Rui Barbosa.


A escolha recaiu em Germano Hasslocher, e sua primeira iniciativa, para dar conta do recado, foi entrar em contato com o livreiro de Rui Barbosa, encarregando-lhe de também adquirir para ele, daí em diante, todos os livros que Rui Barbosa encomendasse para si próprio. E assim o astuto parlamentar rio-grandense, que era versado em diversas línguas, passou a contar com as novidades bibliográficas estrangeiras, jurídicas, filosóficas, políticas, sociológicas e literárias, com as quais Rui Barbosa costumava embasar a opinião pública nacional.


A partir de então, toda vez que a Águia de Haia fazia as suas famosas demonstrações de erudição, Germano Hasslocher saia ao seu encalço, respondendo-lhe com os mesmos autores, citados no original. Acabara o reportório de novidades de que o grande baiano era usufrutuário exclusivo. E isto passou a irritá-lo a ponto de fazer com que, por vezes, ficasse perturbado e levasse desvantagem na discussão.


(Novembro, 1978)




Capa: Jairo Devenutto


Fonte: Reverbel, Carlos. Saudações Aftosas. Porto Alegre, Martins Livreiro, 1980, p. 69/70.

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