sexta-feira, 17 de março de 2023

No Tempo do churrasco (Carlos Reverbel)



Embora fosse naturalista, interessado principalmente em botânica, Saint-Hilaire não se limitou a fazer pesquisas nesse campo, durante o roteiro de nove meses e 1500 quilômetros que cumpriu no Rio Grande do Sul, em 1820, vadeando rios e arroios, pois não existia nenhuma ponte.


Além de trabalhos d herborização, objetivo específico de sua viagem, manteve um diário em que ia anotando o que observara à sua volta, pelos caminhos percorridos ora a cavalo, ora de carreta; não de “carroça”, como diz o tradutor brasileiro.


Não raro Saint-Hilaire se identificava com o agreste meio ambiente, a ponto de não só experimentar, por simples curiosidade, certos hábitos nativos, mas de cultivá-los regularmente nas suas andanças. Foi assim que se tornou habitual tomador de chimarrão, enquanto transitou pelo Rio Grande do Sul.


A primeira vez que provei essa bebida – informa o naturalista – achei-a sem graça, mas logo me acostumei a ela, e atualmente tomo vários mates, de enfiada, mesmo sem açúcar.”


Saint-Hilaire atribuía diversas propriedades ao mate, inclusive a de ser estomacal e, “por conseguinte, necessário a uma região onde se come enorme quantidade de carne, sem os cuidados da perfeita mastigação.”


A carne não era degustada, era engolida, com maus modos, pouca mastigação e voracidade um tanto quanto canina. Mas agora estamos entrando numa fase em que a carne será degustada com fina etiqueta e requintes de voluptuosa mastigação. Deixando de dar o ar de sua graça no trivial caseiro, receberá as honras devidas aos pratos de alta culinária.


Na atual escassez e carestia do produto, resta-nos o consolo de podermos recordá-lo, com água na boca, tal como era deglutido nos velhos tempos. A exemplo do que fez no seu diário, em relação a tantos aspectos da vida cotidiana rio-grandense, Saint-Hilaire desce aos mínimos detalhes, ao fixar os hábitos alimentares do gaúcho, desabridamente, quando não exclusivamente carnívoro, ao tempo de sua viagem.


Referindo-se ao que lhe ofereceram para comer numa estância em que se hospedou, o naturalista assim alude ao cardápio, formado por vários pratos, mas na base de um só ingrediente:


O bom Silvério quis fazer-me almoçar esta manhã, sendo a refeição, como a de ontem à tarde, inteiramente composta de carnes. Nesta região não se come outra coisa. Carne cozida, carne assada, carne picada ou cortada em pedaços, sempre a carne e quase sempre de vaca ou de boi”.


Conta ainda que os estancieiros, mesmo os de menores posses, costumavam carnear uma ou duas reses, para oferecer aos seus visitantes, pedindo-lhes que escolhessem os pedaços de sua preferência, enquanto os restantes eram abandonados no local da carniça. A carne sobrava tanto na mesa do patrão e sua família, como na dos empregados e escravos.


Ainda segundo Saint-Hilaire, num intervalo entre as guerras com o Prata, a guarnição da fronteira ficou durante 27 meses sem receber soldo. Sem dinheiro para comprar outros alimentos, os oficiais e soldados se mantiveram, todo esse tempo, somente na base do churrasco, não havendo sal nem farinha.


Aliás, como também observa o naturalista, a circunstância das tropas da fronteira se alimentar quase exclusivamente de carne muito contribuía para a mobilidade de suas operações militares, pois não precisavam carregar lentos e pesados trens de guerra, com cargueiros e carretas para o transporte de seu aprovisionamento. O gado se deslocava por seus próprios meios de locomoção, acompanhando o ritmo das marchas da cavalaria.


(Outubro, 1979)




Capa: Jairo Devenutto

Fonte: Reverbel, Carlos. Saudações Aftosas. Porto Alegre, Martins Livreiro, 1980, p. 57/58.

Nenhum comentário:

Rodovias Gaúchas com alteração de Fluxo - CRBM, DAER e PRF

Link: https://www.google.com/maps/d/viewer?hl=pt-BR&ll=-28.28439367125109%2C-53.045925850387164&z=7&mid=1ZlKA__gK8tH-WY6mbDeQzlt...