sexta-feira, 17 de março de 2023

Rua Coronel Bordini (Carlos Reverbel)


Caso estranho 


Trata-se do seguinte: o comportamento do automóvel na Rua Coronel Bordini. Embora estranho, o fenômeno pode ser constatado ao vivo por qualquer observador, bastando 20 por cento de olhos de lince e outros tantos de ouvidos de mercador, índices ao alcance do homem comum.


Carros absolutamente normais, à medida em que vão se aproximando da referida via pública começam a entrar em parafuso, ficando completamente transtornados ao atingi-la. O estranho fenômeno se agrava, de forma galopante, na chamada calada da noite. Aliás, esta expressão pode ser aplicada a qualquer lugar, menos em relação à Rua Coronel Bordini, onde a última calada da noite teria ocorrido, segundo os moradores mais antigos, por volta de fevereiro de 1920, ainda na gestão do prefeito José Montauri de Aguiar Leitão.


Além das tradicionais correrias, com os canos de descarga em ritmo de discoteca e as buzinas botando a boca no mundo, agora deram para aparecer automóveis que perdem a identidade ao entrar na Rua Coronel Bordini, assumindo outras funções, como a de campainhas, por exemplo. Em lugar de apertar na campainha, o motorista aperta a buzina. E a pessoa procurada abre-lhe a porta da casa ou a janela do apartamento, indo ao seu encontro ou convidando-o a entrar.


Mas, afinal de contas o carro-campainha não passa de uma amenidade perto do que aconteceu com o pobre do seu Percílio. Ainda não se fez a estatística, mas a esquina da coronel Bordini com a 24 de outubro deve deter o recorde porto-alegrense de atropelamento de pedestres e acidentes de trânsito. Tanto assim que há moradores da zona que fazem o sinal as cruz antes de atravessá-la. Outros fazem promessas ou pedem graças ao Padre Reus. E alguns não se animam a atravessá-la, remontando até a esquina da Hilário Ribeiro. São os que acreditam piamente naquela história de que o seguro morreu de velho.


Com o aparecimento dos supermercados, houve o desaparecimento dos bodegueiros. Mas alguns, antes de fecharem o negócio, conseguiram vendê-lo a incautos seduzidos pela ideia de ingressarem no ramo de secos e molhados, como se dizia na “belle époque”. Recém chegado do interior, trazendo no bolso o produto da venda de sua colônia, o seu Percílio foi um desses incautos, comprando um armazém situado nas cercanias da fatídica esquina formada pela Bordini e a 24 de Outubro.


Logo me inscrevi entre os seus fregueses, tirando a respectiva caderneta, como aquelas de antigamente.


Por sinal, tenho uma vizinha, a dona Carmosina, que coleciona cadernetas de armazém, datada a primeira de 1912, coincidentemente o ano em que vim ao mundo, sem consulta prévia, configurando-se, assim, o primeiro atentado contra os direitos humanos de que fui vítima neste vale de lágrimas. Prefaciadas e anotadas pelo prof. Gudin, essas cadernetas poderiam ser publicadas como subsídio para a história da inflação no país.


O armazém do seu Percílio funcionou até o momento em que ele foi atropelado por um carro na esquina da morte, isto é, na esquina da Bordini com a 24 de Outubro. O seu corpo ficou de barriga para cima, no meio da rua. Logo chegou uma vizinha com uma espécie de lençol. Outra trouxe uma vela. Mas os motoristas que se aproximavam e não podia passar ficavam por conta com o cadáver.


Não é preciso acrescentar que tudo ficou por isso mesmo, pois o motorista goza no Brasil das prerrogativas dos menores, também sendo beneficiado pelo estatuto da irresponsabilidade penal. Por esse motivo, sou de parecer que não se deve andar armado de revólver, nem de facão, nem de metralhadora, nem de bomba molotov, mas apenas de automóvel. É quanto basta para matar e não ir para a cadeia.


Com o assassinato impune do último bodegueiro da zona, fiquei privado de alguns prazeres do cotidiano, como o de adquirir feijão preto embrulhado em papel de jornal. Embora continue a cozinhar o produto em panela de ferro e fogão à lenha, não é a mesma coisa, pois o feijão perde muito de seu caráter popular quando vem na sofisticação das embalagens modernas, tipo supermercados. Aliás, esses estabelecimentos são acima de tudo um festival de embalagens, coisas não comestíveis, razão pela qual só alimentam a barriga da inflação.


(Março, 1977)




Capa: Jairo Devenutto

Fonte: Reverbel, Carlos. Saudações Aftosas. Porto Alegre, Martins Livreiro, 1980, p. 71/72.

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