sexta-feira, 17 de março de 2023

Cartas e bilhetes (Carlos Reverbel)

 

O meu saudoso amigo Dario de Bitencourt, que foi uma figura de destaque como advogado, professor universitário e homem de letras, conservava uma preciosidade: o arquivo de Aurélio Veríssimo de Bitencourt, seu avô, que fôra secretário particular e grande amigo de Júlio de Castilhos.


Ao tempo em que governava o Rio Grande do Sul, Castilhos recolhia-se, com frequência, a uma chácara de sua propriedade – a Chácara da Figueira – comunicando-se com o secretário, que permanecia no Palácio do governo, através de cartas e bilhetes, levados a cavalo por soldados da guarda presidencial.


Quando Dario de Bitencourt, homem extremamente gentil e dotado de imensas reservas de boa vontade, colocou em minhas mãos o valioso arquivo de seu avô, permitindo-me copiar as cartas e bilhetes de Júlio de Castilhos a Aurélio Veríssimo de Bitencourt, esta documentação era conservada em seis pastas, abrangendo, em ordem cronológica, um período de dez anos, entre 1894 e 1903, sendo de notar que o derradeiro recado trazia precisamente a data de 11 de outubro de 1903, escrito, portanto, três dias antes da morte do estadista.


A continuidade da correspondência explica-se pela circunstância de que, mesmo depois de deixar o governo do Estado, em 25 de janeiro de 1898, substituído pelo seu discípulo dileto, Borges de Medeiros, o ex-presidente conservou o cargo de chefe unipessoal do Partido Republicano Rio-Grandense, mantendo Aurélio Veríssimo de Bitencourt como secretário particular, função que este passou a acumular com a de secretário do novo presidente, atuando, então, na dupla função de secretário de Júlio de Castilhos e e Borges de Medeiros.


Era uma eminência duplamente parda…”


Nesta alusão bem humorada, feita durante uma das muitas entrevistas que concedeu, Dario de Bitencourt quis significar que, além da cor parda, seu ancestral exercia certa influência política junto ao chefe do Partido, Júlio de Castilhos, e certa influência administrativa junto ao chefe do governo, Borges de Medeiros, o que não escapou à aguda inteligência de Ramiro Barcelos, no “Antônio Chimango”.


No famoso “poemeto campestre”, o Coronel Prates (Júlio de Castilhos) entrega o jovem Antônio Chimango (Borges de Medeiros) aos cuidados de Aureliano (Aurélio Veríssimo de Bitencourt), atribuindo-lhe o seguinte encargo:


Tu, que és um conhecedor

De tudo como se faz

Ensina-me este rapaz

As manhas de governar

Que ele vai desempenhar

O cargo de capataz.


Leva-o lá para o teu rancho

Vai-lhe ensinando os segredos

Que ele só conta nos dedos

E não tem nenhuma prática.

Ensina-lhe a tua gramática

Pra desmanchar os enredos.”


Como vimos, Júlio de Castilhos recolhia-se seguidamente, à Chácara da Figueira, situada junto ao morro da Cascata, hoje arrabalde da Glória e cuja área terminou sendo atravessada pela atual avenida Oscar Pereira. Naquela época, a zona da Glória não era sequer subúrbio, ficando em plena área rural do município de Porto Alegre. Daí referências como estas, aliás, frequentes nas cartas e bilhetes de Júlio de Castilhos ao secretário:


Aurélio, resolvi não ir hoje à cidade. O terreno está muito encharcado, há muita lama pelas estradas”.


Mas, sempre cioso de seus deveres, acrescenta:


Isto não seria obstáculo para mim se houvesse urgente necessidade de minha presença aí.”



Sempre que era possível, Júlio de Castilhos percorria a chácara, onde possuía cavalos de montaria, parelhas de tiro, vacas leiteiras, bois mansos e ovelhas para consumo, cercando-se, assim, de um ambiente campesino, que de algum modo lembrava o das estâncias paternas. Também costumava recolher-se à sua chácara nos momentos em que necessitava de tranquilidade para executar trabalhos de maior responsabilidade, como as mensagens à Assembleia dos Representantes, que eram de sua elaboração pessoal, na redação, na revisão das provas e até mesmo na feição tipográfica.


Não tardou, porém, a reconhecer que nem a distância, nem o mau tempo, nem tampouco a lama das estradas serviriam de barreiras aos que não lhe davam tréguas no peditório ou na bajulação.


Nunca supus – queixa-se num dos bilhetes ao secretário, datado de 6-10-1896 – que na distância em que me acho da cidade fosse tão perturbado no meu serviço! Aí em Palácio, já a mensagem estaria concluída, há dias.”


Queixas como essa se repetem seguidamente:


Ainda não tenho certeza – adianta ao secretário – de ir aí amanhã. A resolução depende do avanço que tiver o meu trabalho, o que é incerto devido à constante ameaça dos cacetes, que constituem agora o meu maior tormento.”


Noutro bilhete, nova queixa, nestes termos:


Já sofri hoje dois algozes aqui: o Juvêncio e um tipo de Gravataí. Tratei-os bem, mas adverti que não me procurassem mais.”


Em diversas cartas ao secretário, repete esta recomendação:


Mais uma vez, peço-te que me livres dos cacetes que me atormentam aqui! Agora mesmo chegou, de carro, o Ângelo, que veio interromper o meu trabalho, isto é, a leitura dos anexos. Que teimosia irritante.”


Havia, porém, na Chácara da Figueira, horas de pleno lazer e satisfação pessoal, quando ele recebia os amigos a que era realmente afeiçoado.


Aqui estiveram ontem, informa Castilhos ao secretário – o Medeiros e o Simch, que me fizeram muito agradável companhia.”


Referia-se ele, evidentemente, a Antônio Augusto Borges de Medeiros e Francisco Rodolfo Simch.


Com frequência, aos domingos, formavam-se rodas de palestras, com o comparecimento de maior número de amigos e correligionários, ocasiões em que ocorria a então chamada “branquinha”. Júlio de Castilhos tomava providências pessoais para que não faltasse a bebida de preferência geral. Ainda não se havia propagado o costume do “whisky”.


Amanhã quando vieres – recomendava – deves trazer no carro duas garrafas de caninha especial (Lágrimas de Santo Antônio), visto haverem sido ontem esgotadas, em abundante palestra dos amigos, as duas que eu trouxe sexta-feira.”


E noutro bilhete, ainda dirigido ao secretário:


Incluo 25$000 que entregarás ao Cássio (seu ajudante-de-ordens, Cássio Brum Pereira). É a importância da dúzia de “Lágrimas”, que ele comprou há dias. Dize-lhe que encomende outra dúzia.”


Moral da história: ainda não havia sido institucionalizado o regime das mordomias risonhas e francas.


Entre os 717 documentos ligados a Júlio de Castilhos que tive em mãos, ao consultar o arquivo de Aurélio Veríssimo de Bitencourt, um dos mais importantes, diz respeito a uma invasão do Estado de Santa Catarina, por tropa rio-grandense, autorizada pelo então presidente e comandada pelo coronel Bento Porto, um veterano de 1893 que fez parte da Divisão do Norte e, ao que tudo indica, foi quem deu a ordem de fogo de que resultou a morte de Gumercindo Saraiva.


Quando narrei a história dessa invasão, há coisa de uns dez anos, aqui mesmo no “Correio do Povo”, fiquei na expectativa de enorme repercussão, pois o episódio se conservava inédito, pelo menos na sua feição verdadeira, e fora contado, na ocasião, à luz de documentos até então sem qualquer divulgação. Não houve, entretanto, o menor sinal de que o fato tivesse qualquer repercussão.


Vejo, agora, que o “scholar” norte-americano Joseph L. Love, na obra que escreveu sobre “o regionalismo gaúcho e as origens da Revolução de 30”, reportou-se ao episódio, narrando-o do seguinte modo e indicando a fonte onde o encontrara:


Enquanto os habitantes de Canudos eram exterminados, um evento semelhante ocorria nas fímbrias do Rio Grande do Sul. Neste caso, porém, envolveu um massacre, e não uma luta prolongada. No município de Lages, bem em cima dos limites do Rio Grande com Santa Catarina, estava desenvolvendo-se uma comunidade milenarista. Em agosto de 1897, um jornal de Lages, assumindo a dimensão sebastianista-restauradora, sugeria que o povoado de Entre Rios, de 300 habitantes, tinha ligações não só com Antônio Conselheiro, mas também com os federalistas gaúchos. Para castilhos, esta “evidência” era suficiente. Imediatamente planejou com o governador de Santa Catarina um ataque combinado das duas forças policiais estaduais sobre o vilarejo, mas apenas os gaúchos parecem ter participado. Dirigiu a operação o subchefe de polícia do 1º Distrito. Desencadeando um ataque de surpresa a Entre Rios, suas tropas mataram todos os homens da comunidade e queimaram suas cabanas, deixando as mulheres e as crianças vivas, porém, desabrigadas. Ao receber o relatório da operação, em fins de agosto, Castilhos observava satisfeito que o subchefe “conduziu-se como eu esperava”, merecendo “todos os louvores e aplausos”.


Apenas um reparo à narrativa do “brazilianist” Joseph L. Love: embora Júlio de Castilhos tenha convidado o presidente de Santa Catarina, Hercílio Luz, para participar da operação, na hora de autorizá-la nada comunicou ao chefe do governo barriga-verde, deixando para fazê-lo depois do fato consumado, com a invasão do Estado vizinho e extermínio dos fanáticos de Entre Rios.


Talvez o presidente catarinense viesse com panos quentes, no momento de ser executada a operação contra os fanáticos, cujo aldeamento representava, aos olhos de Júlio de Castilhos, uma nova ameaça à consolidação da República, coisa que ele jamais admitiria, levando até as últimas consequências, como sempre o fez, a sua reação aos inimigos (reais ou supostos) do regime republicano.


(Maio, 1979)




Capa: Jairo Devenutto

Fonte: Reverbel, Carlos. Saudações Aftosas. Porto Alegre, Martins Livreiro, 1980, p. 73/76.

Nenhum comentário:

Rodovias Gaúchas com alteração de Fluxo - CRBM, DAER e PRF

Link: https://www.google.com/maps/d/viewer?hl=pt-BR&ll=-28.28439367125109%2C-53.045925850387164&z=7&mid=1ZlKA__gK8tH-WY6mbDeQzlt...