sexta-feira, 17 de março de 2023

Meninórias porto-alegrenses (Carlos Reverbel)

 

Mudança para Bruxelas


Não tenho pejo de confessar que sou um cidadão acomodado e omisso e, como tal, completamente destituído de espírito público. Isto não impede, entretanto, que seja de parecer que indivíduos deste jaez deveriam ser fuzilados, a começar por mim, naturalmente.


Relendo as palavras alinhadas acima, não posso deixar de acrescentar que, apesar de me falecerem os sentimentos cívicos, sou bem aquinhoado de outras virtudes, modéstia à parte. Duvido, por exemplo, que o pessoal aqui da redação (a partir do “copy-desk”) seja capaz de amparar as palavras em desuso, como eu as amparo, empregando-as com frequência, naturalidade e, sobretudo, com abundância de coração.


Isto posto, sinto-me perfeitamente à vontade para declarar que, no dia de hoje, minha afeição está voltada para as palavras pejo e jaez, empregadas logo no início destas poucas e mal traçadas linhas, por motivos humanitários, pois acho uma crueldade como começam a ser relegadas pelas pessoas de bom gosto e fino trato.


Peço ao “copy-desk” que as respeite, embora sabendo-o de ordinário desalmado. É que, estando quase em desuso, elas se encontram quase moribundas, merecendo, assim, mais respeito e comiseração do que se já estivessem exalado o último suspiro.


Por causa do meu desmedido, quando não desvairado amor pelas palavras que estão em capítulo de morte, ultimamente tenho frequentado os clássicos, com bastante assiduidade e proveito. Ainda outro dia, lendo “A família e a festa na roça”, do nosso querido Martins Pena, deparei com esta fala do personagem Juca: “Na cidade, isso se fia mais fino. Há meninórias finas como lã de cágado”.


Entre parêntese: proponho a inclusão desta passagem da famosa comédia na prova de português dos próximos exames vestibulares. Os candidatos, em geral meninórios, ficariam muito bem servidos para darem largas aos seus vastos conhecimentos de vernáculo e humanidades.


Talvez tenha sido Martins Pena o último autor a levar ao palco o substantivo meninória, mas a palavra ainda não foi retirada do “Aurelião”, sendo este um dos motivos por que serei eternamente grato ao grande dicionarista, de alta estirpe alagoana, não paulistana, diga-se “en passant”.


Tenho usado com relativo êxito o sinônimo moçoila, mas pretendo, na primeira oportunidade, colocá-lo na geladeira, substituindo-o pelo termo meninória, bem mais arcaico e, como tal, bem mais chegado ao meu velho coração cansado.


Se as meninórias, segundo Martins Pena, eram “finas como lã de cágado”, afinal de contas, o que vem a ser a aludida lã e o respectivo cágado?

Depois de ter consultado meus alfarrábios, vendo pelo que comprei esta pequena elucidação: aplicava-se a expressão, em priscas eras, às mulheres dotadas de malícia e esperteza. Quer me parecer, no entanto, que Martins Pena avançou um pouco o sinal, ao estendê-la às meninórias, pois estas, naqueles recuados tempos, eram em geral pulcras, pudicas e pundonorosas, senão bonocas, no sentido lato da palavra.


Por falar em meninórias, defendo a teoria segundo a qual os apreciadores do material, se moradores de Porto Alegre, não deveriam procurá-las em outros lugares. Além de existirem em profusão, eu vos asseguro, do alto da minha senilidade, que as meninórias mais bonitas do globo terráqueo fixaram residência em Porto Alegre, muito antes da obra de humanização da cidade levada a efeito pelo nosso excelente prefeito.


Outra coisa: elas estão muito bem representadas tanto na classe A, como na B e até mesmo na C, podendo ser encontradas, nestas condições, tanto nos Moinhos de Vento, como na Rua da Varzinha e até mesmo no Campo da Tuca.


Meninórias que em Paris serviriam para modelo dos grandes costureiros e que interromperiam o trânsito nos Champs Elysées (pela primeira vez na história da França), aqui podem ser encontradas até mesmo entre estouvadas balconistas e trêfegas bancárias.


Neste festival de belas meninórias, nada mais comovente do que ser moça feia em Porto Alegre, mesmo pendendo para o tipo engraçadinho. Em tais casos, aliás, pouco frequentes, costumo aconselhar mudança de domicílio, se possível para Bruxelas, onde qualquer porto-alegrense seria apontada como tipo de rara beleza.


(Fevereiro, 1979)



Fonte: Reverbel, Carlos. Saudações Aftosas. Porto Alegre, Martins Livreiro, 1980, p. 14/15.

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