sexta-feira, 17 de março de 2023

Porto Alegre por Carlos Reverbel



Quando vim para Porto Alegre havia apenas um casarão com pretensões alterosas: o edifício Malakoff. Ficava na Praça 15, ainda não conflagrada e de alta periculosidade, como é de sua natureza hoje em dia. Por causa dessas e outras modificações urbanas às vezes sou convidado a dar meu testemunho sobre a evolução da cidade.



Os rapazes de hoje montaram diversos dispositivos para amolar as velhas gerações. As chamadas entrevistas, em que colhem subsídios para suas pesquisas, funcionam com grande eficiência nesse azucrinante sentido.


Ainda noutro dia fui brindado com a visita de um entrevistador, por sinal condenado ao desemprego, como castigo por ter ingressado no curso de sociologia, profissão que não existe no nosso mercado de trabalho. Em lugar de prestar-lhe pronto socorro, aconselhando-o a mudar de curso, me submeti pacientemente ao seu implacável interrogatório. O futuro “chomeur” queria saber em que medida Porto Alegre tem contribuído para o tipo brasileiro de civilização urbana.


O tema é realmente sedutor, motivo pelo qual merece amplo esclarecimento e vasta divulgação. Senão, vejamos. Como as dúvidas que existiam a respeito já foram dirimidas, permito-me afirmar, em caráter definitivo, que o vendedor-ambulante-parado é uma criação porto-alegrense.


Igualmente porto-alegrense é uma outra inovação, também revolucionária: o “trailer” sem rodas. De acordo com a mais recente estatística, temos na cidade 165 “trailers”, todos sem rodas, o que pode prejudicar sensivelmente o comércio de pneumáticos, mas, em compensação, veio dar novas dimensões à indústria de reboques, permitindo-lhes desempenhar as funções de mercadinhos, quitandas, cafés, bares, restaurantes, lanchonetes, boates e até quartos de alta rotatividade.


Porto Alegre pode reivindicar, ainda, o lançamento do artesanato-em-série, cujas peças, fabricadas mecanicamente, são tocadas pela mão do artesão somente no ato de sua venda ao freguês, operação que se processa a céu aberto e em plena rua, dispensando o trivial e mercenário aparato do comércio lojista.


Os geógrafos mais afoitos têm apontado o aterro do Guaíba como uma solução holandesa, não porto-alegrense. Mas não se pode concordar com a leviana assertiva. Além do odor acre de maresia, o aterro holandês se diferencia do nosso por não ter sido motivado por falta de terra (vulgo espaço vital), o que lhe tira toda a originalidade, enquadrando-o no rol das coisas prosaicas e necessárias. Já o aterro do Guaíba, no seu antropofágico engulimento do rio, não passa de um exercício surrealista de engenharia, pois terra boa e barata nunca nos faltou.


O muro da Mauá, por sua vez, é a primeira tentativa no sentido de criação em grande escala, de uma mitologia porto-alegrense. Foi construído em desafio à posteridade, tudo indicando que jamais será decifrada a sua utilidade. Entretanto, pelas dúvidas, já devia ter sido tombado, pois é sempre possível um arquitetonicídio, como o que ameaça a pranteada Farmácia Carvalho.



Aliás, a Farmácia Carvalho, assim como o saudoso Cinema Guarani, deveriam permanecer em ruínas, a exemplo do Coliseu romano, da Acrópole ateniense e da Igreja do Galo, em São Gabriel, a popular terra dos marechais. Talvez seja mais turístico conservar-se a farmácia e o cinema assim em ruínas, como destroços da antiga civilização da Rua da Praia. Lamentavelmente não poderá fazer parte do conjunto, por já ter sido vítima da picareta do progresso, o não menos histórico Restaurante Ghilosso.


Na falta do vetusto imóvel, talvez seja de boa política abrir voluntariado para tombamento dos fregueses sobreviventes do restaurante, entre os quais me incluo, evocando neste momento solene, através da memória gustativa e com água na boca, o suculento cardápio do extinto estabelecimento, cuja mesa, dentre outros frequentadores históricos, era distinguida, diariamente, pelo abundante e voluptuoso apetite de meu avantajado amigo Oswaldo Goidanich.


Como já tive a lealdade e coragem de confessar, a minha bibliografia, por sinal bastante atentada, é constituída por obras não escritas. Pretendo enriquecê-la oportunamente, com as memórias do Restaurante Ghilosso.


(Agosto, 1978)



Capa: Jairo Devenutto




Fonte: Reverbel, Carlos. Saudações Aftosas. Porto Alegre, Martins Livreiro, 1980, p. 87/88.

Imagem Farmácia Carvalho: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/5/56/Farm%C3%A1cia_carvalho_-_porto_alegre.jpg

Imagem Ed. Malakoff: https://prati.com.br/porto-alegre/porto-alegre-exercicios-de-bombeiros-edificio-malakoff-decada-1900.html

Acesso 17/03/2023

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