sexta-feira, 17 de março de 2023

O couro e a carne (Carlos Reverbel)


Era este o retrato da pecuária gaúcha, segundo a crônica de Simão de Vasconcelos, publicada em 1663:


Os campos não têm fim, o número de gado são milhões, donde só pelos couros se mata, e se carregam muitos navios deles, deixando a carne por inútil”.


Na década de 20, já neste século e passados uns 250 anos, a situação era muito outra, mas em certas circunstâncias ainda se deixava “carne por inútil”. Lembro-me quando piá ter ajudado a parar rodeios, para aparte de vacas de invernar, cujos terneiros eram abatidos na hora, ficando empilhados no local da campereada. O pobrerio das redondezas aparecia, levando o que podia na garupa e até de carroça. Mas a maior parte da carniça ficava no alto da coxilha para repasto dos senhores corvos.


Dizem ter havido um combate na revolução uruguaia de 1904 em que ficou tanta gente morta, no local em que se deu o entrevero, que os corvos só comiam de capitão pra cima. Não sei se os urubus, em relação ao gado bovino, adotariam critério semelhante, refugando os terneiros, por exemplo. Não é de duvidar.


Estive a semana passada num remate, realizado no município de São Gabriel, a celebrada “terra dos marechais” e de Maneco Pereira, o gaúcho que laçava com o pé. Certa vez, quando contavam suas façanhas tive curiosidade de saber se ele laçava com o pé direito ou com o esquerdo. “Com os dois”, foi a resposta.



Houve momentos no remate em que a praça ficou ensandecida, mergulhando numa espécie de paranoia, com a vaca com cria, de gado geral, sendo cotada a 7 mil cruzeiros a peça. Não há muitos anos, nos negócios de gado de cria, o terneiro ia por morto. E antigamente chegava a ser abatido no rodeio. Agora está valendo 7 mil cruzeiros, importância com que se podia comprar um touro puro por cruza há coisa de três anos.


O ambiente no remate era de contentamento com a lei da oferta e da procura. Como se sabe, essa lei é sempre bem recebida quando funciona a favor do produtor. O pessoal só bota a boca no mundo, berrando que nem bode embarcado e apelando para o governo, quando a lei funciona contra. Já chegaram a pedir a sua revogação, por via de um decreto-lei. O que não deixa de estar certo, pois afinal de contas ninguém é de ferro, segundo Ascenso Ferreira.


Observando melhor, constatei que a praça ficara paranoica apenas aparentemente. Os altos preços do remate tinha sua explicação: a escassez. Este foi o resultado da política que vinha sendo adotada no setor pastoril. Cometeram tais disparates, em função de uma tecnocracia aloprada, que o rebanho foi diminuindo e, consequentemente, os preços teriam de desembestar que nem manada de búfalos. Tudo por causa da escassez, convém repetir.


Agora temos de esperar alguns anos até as coisas se normalizarem com a recuperação e o crescimento do rebanho, o que infelizmente não acontece como na agricultura, capaz de reerguer-se de uma safra para outra. E há lavouras que dão diversas colheitas por ano, como a do tomate, já acusado, por sinal, de exacerbar a inflação, ao lado do soporífero e imbele chuchu.


Não vejo outra forma de apressar o processo reprodutivo senão voltarmos a criar o gado de que fala o cronista Gabriel Soares, no “Tratado descritivo do Brasil”, cujo testemunho data do ano de 1587. Ouçamos o velhíssimo escriba:


As vacas parem cada ano e não deixam nunca de parir por velhas; as novilhas como são de ano esperam o touro, e aos dois anos vem paridas, pelo que acontece muitas vezes mamar o bezerro na novilha e a novilha na vaca juntamente”.


Na condição de poeta rural e estancieiro no calçadão da Rua da Praia, tenho minhas dúvidas a respeito da precocidade dessas vacas e novilhas, mas como o testemunho de Gabriel Soares foi admitido pelos nossos maiores historiadores, desde Francisco Adolfo de Varnhagem até Capistrano de Abreu, não serei eu quem irá contestá-lo. Assim, se já existiram no Brasil vacas e novilhas capazes de concorrer com a consorte do coelho, em matéria de maternidade, voltemos a elas.


Isto posto, proponho que a Estação Experimental de Cinco Cruzes abandone os trabalhos de seleção zootécnica que vem realizando para a formação da raça Ibagé e passe a fazer pesquisas sobre a possibilidade de ressuscitar e multiplicar o gado de que fala o venerado cronista Gabriel Soares. Seria o caminho mais curto e mais certo para o repovoamento dos campos rio-grandenses e o único meio de restabelecer-se a normalidade no abastecimento de carne bovina no Estado.



(Agosto, 1979)


Fonte: Reverbel, Carlos. Saudações Aftosas. Porto Alegre, Martins Livreiro, 1980, p. 50/51.




Crédito foto Maneco Pereira – Blog do Léo Ribeiro: Fonte: Livro "Maneco Pereira o homem que laçava com o pé", de autoria do historiador Osório Santana Figueiredo) https://blogdoleoribeiro.blogspot.com/

Acesso 13/02/2022

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