quinta-feira, 9 de março de 2023

Paulo Coelho por Carlos Reverbel

 


O Gordo

Duvido que isso possa acontecer presentemente, mas havia uma pessoa que não conseguia viver longe de Porto Alegre. Por causa desse amor, que lhe foi fatal, Paulo Coelho sacrificou a grande carreira que poderia ter feito pelos caminhos do mundo.

O falecido Paulo, vulgo o Gordo, fazia misérias no piano, principalmente depois da meia-noite. Para ele, o teclado não tinha querer, suas poderosas mãos inspiradas é que mandavam e desmandavam. Era dono de todos os ritmos populares, enriquecendo-os sempre com o seu modo pessoal de executá-los. E possuía, ainda por cima, o senso do acompanhamento e o gênio da improvisação.

Não sei se isso é tecnicamente possível, mas ouvi do dr. Alfonso Ortiz Tirado, famoso médico e cantor mexicano, que “o Paulo desafinava junto com o cantor, quando este desafinava”. E Carmen Miranda, noutra ocasião, disse que gostava de cantar em Porto Alegre, “porque podia trabalhar sem ensaios, acompanhada pelo Paulo Coelho”.



O Gordo também era inspirado compositor, mas em geral não escrevia as suas melodias, improvisando-as ao sabor de uma noitada, para esquecê-las na ressaca do dia seguinte. Contudo, deixou algumas páginas escritas que lhe conservam o nome de compositor popular, a começar pelo samba-canção “Alto da Bronze”, cuja letra foi feita pelo Foquinha, então repórter policial da “Folha da Tarde” e falecido, segundo a frase de Augusto Meyer, ainda “no tempo da flor”. Mas o seu forte, era o improviso rasgado nas madrugadas que não voltam mais.




Aconteciam, às vezes, cenas de um imprevisto espetacular. A orquestra parava, cumprido o horário de trabalho. Mas o Paulo Coelho, se fosse noite em que os santos haviam baixado, não deixava o piano. E então passava a executar para os amigos um repertório inventado na hora, enquanto os garçons retiravam as toalhas e colocavam as cadeiras em cima das mesas, preparando o ambiente para a faxina do dia.

O homem valia, sozinho, por todo um espetáculo. Aliás, foi isso mesmo o que lhe disse, certa vez, um empresário, terminando por levá-lo para o Cassino da Urca, no tempo em que a roleta era risonha e franca e em que o bacará propunha aos aficcionados o terrível dilema shakespeareano: deve-se ou não se deve pedir a cinco? O Gordo entrou em funcionamento e em pouco tempo estava com tudo: cartaz nacional e dinheiro no bolso. Mas, um belo dia, anoiteceu e não amanheceu, embarcando para Porto Alegre, sem dar satisfação alguma ao seu empresário.

O mesmo ele já fizera em Buenos Aires, repetindo a dose, mais adiante, em Santiago do Chile, sempre pelo mesmo motivo: não podia viver longe da cidade, esta hoje em dia tão mal amada Porto Alegre. E se a sua cidade nada lhe dava em troca, isto não lhe fazia mossa. Dizem que as chamadas mulheres fatais desapareceram, mas naquela época ainda existiam. E Paulo Coelho amava Porto Alegre como a uma mulher fatal.



O que contava para ele não era o sucesso nos grandes centros, nem o dinheiro dos grandes contratos. Era a velha tia que o criara, os músicos de sua orquestra, os amigos e a sua cidade, principalmente quando iam altas as madrugadas. Mas Porto Alegre lhe foi fatal até na hora da morte, atraindo-o para um de seus maiores espetáculos, num momento em que ele não se encontrava em condições de participar.

Paulo Coelho andava nas últimas, cercado de doenças por todos os lados. Mas era um domingo, com sol de maio. E havia Grenal. Então ele resolveu dar por encerradas todas recomendações e prescrições médicas, recebendo alta por conta própria.

Depois de um almoço comemorativo, em que quebrou com alegria o regime a que vinha sendo submetido, tomou um táxi e mandou tocar para o estádio. A sua última vontade, que era apenas assistir o Grenal, lhe foi negada no meio do caminho. Mas talvez ele tenha morrido como queria: na sua cidade e em dia de festa, a céu aberto.


(Agosto, 1978)




Fonte: Reverbel, Carlos. Saudações Aftosas. Porto Alegre, Martins Livreiro, 1980, p. 48/49.

Crédito Foto Horacina, Reverbel e Coelho: Laitano, Cláduia. Reverbel, Carlos. Arca de Blau - Memórias. Porto Alegre: Artes e Ofícios Editora Ltda, 1993, p.66

Crédito Foto Paulo Coelho e Carmen Miranda: https://www.matinaljornalismo.com.br/parentese/porto-alegre-uma-biografia-musical/paulo-coelho-o-rival-de-si-mesmo-capitulo-xxvi/ 

Crédito Chafariz Alto da Bronze: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiiO4YiRDyU96XGws_cehNEW3uY2-_Z0FJ46VBbERpi-ZSnSRNUyG5EPiYdedc8Kep_DoE_Powr4v5ZEWrpXQAaNMpWNvk5lTFM90ziX_bHl0rShE2ZTdeZyE1ep7btJV5iDvr93dz9vCFg/s1600/alto+da+bronze%252C+1930.jpg

Crédito Música: https://soundcloud.com/musicadeportoalegre3/alto-da-bronze-paulo-coelho

Acesso 09/03/2023

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