“Quando
o casal atinge a idade do ronco, fenômeno que, de um modo geral,
aparece depois dos 40 anos, havendo, entretanto, frequentes casos de
precocidade, aconselha-se a separação de quartos, para evitar-se a
separação de corpos.”
Encontrei
esta sábia recomendação no compêndio intitulado “A felicidade
conjugal”, de autoria de Urbano Ulback, tradução de Odoniran
Adamastor Pacheco do Canto, pág. 148.
Como
o ronco matrimonial é um assunto que sempre me preocupou, fui até o
fim do referido cartapácio, na esperança de encontrar maiores
subsídios, completando, assim, as informações que vinha
recolhendo, de oitiva, sobre a matéria.
Eu
já sabia, por exemplo, que o ronco não tem cura, apoiado na opinião
de diversos facultativos amigos, sempre interrogados fora dos
respectivos consultórios médicos, pois faço parte da legião de
indivíduos que, toda vez que se aproxima de um esculápio,
furta-lhe, no mínimo, duas consultas.
Lamentavelmente,
a leitura do tratado de Ulback foi pouco proveitosa a esse respeito,
limitando-se à recomendação já mencionada, em matéria de roncos
conjugais. Não tenho, assim, outra alternativa senão recorrer às
minhas próprias pesquisas e observações, lamentando, de antemão,
não ter me acudido a ideia de apresentá-las no congresso da
Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, recentemente
realizado em São Paulo.
Acredito
que poderia propor ao aludido conclave, com o necessário embasamento
científico, uma alentada tese, com o seguinte e não menos alentado
título: “O ronco como fator de decadência da civilização
ocidental, através de sua culpabilidade na dissolução dos sagrados
vínculos matrimoniais.”
Sabe-se,
com fundamento em estatísticas fidedignas, talvez mais exatas e
completas que as da própria Unesco, que o ronco tem sido responsável
por grande número de ações de divórcio, propostas nas varas de
família de diversos países. Daí, certamente, a origem da judiciosa
recomendação de Urbano Ulback: “a separação de quartos para
evitar a separação de corpos”.
Como
o ronco é um mal incurável, cujos portadores não são aceitos nem
pelos psicanalistas, não se pode deixar de apontá-lo como coisa do
demônio, introduzida no recesso dos lares, furtivamente e na calada
da noite, para solapar os alicerces da família cristã. Os casais
que resistem à dura prova, chegando às bodas de ouro, sempre no
mesmo quarto, dão mostras de que nem tudo está perdido,
alimentando, com seu edificante exemplo, as últimas esperanças de
salvação da família e, por via de consequência, da sociedade e da
própria civilização.
No
momento em que está sendo regulamentada a lei do divórcio,
naturalmente o capítulo do ronco vai receber as atenções que lhe
são devidas, por parte dos nossos atilados legisladores a fim de
evitar-se abusos de consequências imprevisíveis.
Entre
outras, a tendência no sentido de incluir-se o ronco, a exemplo de
certos países, na categoria de “crueldade mental”, terá de ser
definitivamente afastada, pois admiti-la corresponderia a
emprestar-lhe uma elasticidade exagerada e perigosa, abrindo-se
caminho para interpretações capciosas e até mesmo para ações
fraudulentas. Se houver abuso do ronco, como pretexto para ruptura
dos laços matrimoniais, quando existe a recomendação infalível de
Ulback para resolver o problema (“separação de quartos, para
evitar-se a separação de corpos”), a própria instituição do
divórcio poderá vir a ser comprometida de forma irremediável.
Recomenda-se
aos indecisos e titubeantes, em face do ronco conjugal, renunciarem
ao matrimônio, permanecendo em estado de solteiro. Aliás, o ronco
celibatário desdobra-se com naturalidade, atingindo toda a
plenitude, no tempo e no espaço, pois, contrariamente ao que
acontece com o do casal, não fica sujeito ao cutuco inibitório de
nenhum dois cônjuges.
Segundo
o prof. Leon Cachard, o ronco não passa de uma função fisiológica
que não deve ser contida e, ainda menos, interrompida bruscamente,
razão pela qual ele também recomenda a separação de quartos, a
fim de que os cônjuges possam exercê-la com a devida espontaneidade
e de acordo com a ordem natural das coisas.
Como
se trata de um cientista do século passado, talvez a sua teoria
tenha caducado, mas é absolutamente certo, por outro lado, não ter
sido ele influenciado por nenhuma preocupação relacionada com a
preservação dos laços matrimoniais, como foi o caso do
contemporâneo Ulback, visivelmente empenhado na defesa do vínculo
indissolúvel.
Por
sua vez, os atuais seguidores do mestre germânico, naturalmente mais
realistas e avançados, chegam ao ponto de recomendar, para
saneamento da vida conjugal, não apenas a separação de quartos,
mas, em caso de roncos acima de 80 decibéis, a própria separação
de tetos.
(Julho,
1977)
Capa: Jairo Devenutto
Fonte: Reverbel, Carlos. Saudações Aftosas. Porto Alegre, Martins Livreiro, 1980, p. 59/61.
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