sábado, 4 de março de 2023

O ronco (Carlos Reverbel)


Quando o casal atinge a idade do ronco, fenômeno que, de um modo geral, aparece depois dos 40 anos, havendo, entretanto, frequentes casos de precocidade, aconselha-se a separação de quartos, para evitar-se a separação de corpos.”
Encontrei esta sábia recomendação no compêndio intitulado “A felicidade conjugal”, de autoria de Urbano Ulback, tradução de Odoniran Adamastor Pacheco do Canto, pág. 148.
Como o ronco matrimonial é um assunto que sempre me preocupou, fui até o fim do referido cartapácio, na esperança de encontrar maiores subsídios, completando, assim, as informações que vinha recolhendo, de oitiva, sobre a matéria.
Eu já sabia, por exemplo, que o ronco não tem cura, apoiado na opinião de diversos facultativos amigos, sempre interrogados fora dos respectivos consultórios médicos, pois faço parte da legião de indivíduos que, toda vez que se aproxima de um esculápio, furta-lhe, no mínimo, duas consultas.
Lamentavelmente, a leitura do tratado de Ulback foi pouco proveitosa a esse respeito, limitando-se à recomendação já mencionada, em matéria de roncos conjugais. Não tenho, assim, outra alternativa senão recorrer às minhas próprias pesquisas e observações, lamentando, de antemão, não ter me acudido a ideia de apresentá-las no congresso da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, recentemente realizado em São Paulo.
Acredito que poderia propor ao aludido conclave, com o necessário embasamento científico, uma alentada tese, com o seguinte e não menos alentado título: “O ronco como fator de decadência da civilização ocidental, através de sua culpabilidade na dissolução dos sagrados vínculos matrimoniais.”
Sabe-se, com fundamento em estatísticas fidedignas, talvez mais exatas e completas que as da própria Unesco, que o ronco tem sido responsável por grande número de ações de divórcio, propostas nas varas de família de diversos países. Daí, certamente, a origem da judiciosa recomendação de Urbano Ulback: “a separação de quartos para evitar a separação de corpos”.
Como o ronco é um mal incurável, cujos portadores não são aceitos nem pelos psicanalistas, não se pode deixar de apontá-lo como coisa do demônio, introduzida no recesso dos lares, furtivamente e na calada da noite, para solapar os alicerces da família cristã. Os casais que resistem à dura prova, chegando às bodas de ouro, sempre no mesmo quarto, dão mostras de que nem tudo está perdido, alimentando, com seu edificante exemplo, as últimas esperanças de salvação da família e, por via de consequência, da sociedade e da própria civilização.
No momento em que está sendo regulamentada a lei do divórcio, naturalmente o capítulo do ronco vai receber as atenções que lhe são devidas, por parte dos nossos atilados legisladores a fim de evitar-se abusos de consequências imprevisíveis.
Entre outras, a tendência no sentido de incluir-se o ronco, a exemplo de certos países, na categoria de “crueldade mental”, terá de ser definitivamente afastada, pois admiti-la corresponderia a emprestar-lhe uma elasticidade exagerada e perigosa, abrindo-se caminho para interpretações capciosas e até mesmo para ações fraudulentas. Se houver abuso do ronco, como pretexto para ruptura dos laços matrimoniais, quando existe a recomendação infalível de Ulback para resolver o problema (“separação de quartos, para evitar-se a separação de corpos”), a própria instituição do divórcio poderá vir a ser comprometida de forma irremediável.
Recomenda-se aos indecisos e titubeantes, em face do ronco conjugal, renunciarem ao matrimônio, permanecendo em estado de solteiro. Aliás, o ronco celibatário desdobra-se com naturalidade, atingindo toda a plenitude, no tempo e no espaço, pois, contrariamente ao que acontece com o do casal, não fica sujeito ao cutuco inibitório de nenhum dois cônjuges.
Segundo o prof. Leon Cachard, o ronco não passa de uma função fisiológica que não deve ser contida e, ainda menos, interrompida bruscamente, razão pela qual ele também recomenda a separação de quartos, a fim de que os cônjuges possam exercê-la com a devida espontaneidade e de acordo com a ordem natural das coisas.
Como se trata de um cientista do século passado, talvez a sua teoria tenha caducado, mas é absolutamente certo, por outro lado, não ter sido ele influenciado por nenhuma preocupação relacionada com a preservação dos laços matrimoniais, como foi o caso do contemporâneo Ulback, visivelmente empenhado na defesa do vínculo indissolúvel.
Por sua vez, os atuais seguidores do mestre germânico, naturalmente mais realistas e avançados, chegam ao ponto de recomendar, para saneamento da vida conjugal, não apenas a separação de quartos, mas, em caso de roncos acima de 80 decibéis, a própria separação de tetos.

(Julho, 1977)


Capa: Jairo Devenutto



Fonte: Reverbel, Carlos. Saudações Aftosas. Porto Alegre, Martins Livreiro, 1980, p. 59/61.

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