quinta-feira, 2 de março de 2023

O tenente e o advogado (Carlos Reverbel)

 

Uma vez no ano de 1930 eu ia atravessando a Praça da Matriz na direção do Ginásio Anchieta e resolvi mudar de rumo, entrando no Tribunal de Justiça, como fazia seguidamente, pois não havia, na minha abalizada opinião, melhor lugar para gazear as aulas.


Era dia de júri, programa mais atraente que as aulas de latim do padre Schneider, de inglês do padre Buck, de francês do padre Werner et caterva. Aliás, três mestres notáveis, coisa que só descobri muito depois. Felizmente ainda deu para recuperar um pouco do muito que deixei de aprender com eles, reconstituindo através da memória algumas migalhas de suas lições, espécie de salvados do tempo perdido.


Quando ingressei no recinto do júri estava sendo procedida a leitura dos autos, pelo escrivão Vasques. Era um crime de infanticídio e a ré ali se encontrava de cabeça baixa, olhos lacrimejantes e ar compugido, como de praxe. Não estou bem lembrado, mas parece que exercia as funções de lavadeira, trabalho que ainda se praticava nas margens do Riacho e na enseada da Praia de Belas, então bastante bucólicas, senão merencórias, como algumas telas do paisagista Ângelo Guido.


Naquela época, o júri tinha grande público, era um espetáculo, com seus astros, alguns de enorme cartaz, rivalizando com os que faziam papel de mocinho nos filmes seriados das matinês do Apolo. Como eu me alinhava entre os frequentadores mais assíduos do espetáculo, logo percebi que não se tratava de júri comum. Havia um frêmito de expectativa envolvendo o ambiente. Os habituês estavam visivelmente excitados. Esperava-se uma revelação, o despontar de novo astro. Motivo: a estreia de jovem advogado que chegava ao Tribunal aureolado pela fama de invulgar talento e pela láurea de seu currículo acadêmico.


O advogado Mário Cinco Paus, que fôra repórter forense na mocidade e continuava com a mania de ser o mais bem informado, antecipava aos presentes, conhecidos e desconhecidos:


- “Vai ser um estouro.”


E lá no seu canto o rábula Saint-Clair Roque da Silva, ex-barbeiro, aguardava, algo conspícuo, o primo-canto do jovem “colega”.


Falou o promotor, cujo nome não lembro. Mas devia ser dos bons, pois naquele tempo os promotores da capital eram escolhidos a dedo. Havia uma tradição, em termos de critério seletivo. E o cargo muitas vezes constituía o primeiro passo na carreira política, como aconteceu com Getúlio Vargas e também, se não estou mal lembrado, com Ariosto Pinto e João Neves da Fontoura. Não venho da época do dr. Getúlio na promotoria porto-alegrense, mas assisti o desempenho de grandes promotores, como Francisco Rodolfo Smich Júnior, aliás de curta passagem pelo cenário do velho casarão da Praça da Matriz, cuja destruição pelo fogo, por sinal, tive de descrever muito depois, já então como repórter de polícia.


Quando o meritíssimo juiz deu a palavra à defesa, levantou-se o jovem advogado, de compleição franzina, gestos contidos, fisionomia grave, finas e elegantes maneiras. Os frequentadores mais antigos do recinto, no saudosismo de um Pereira da Cunha, um Álvaro Masera, um Plínio Casado, um Germano Hasslocher, esperavam a reprise daquelas emocionantes peças oratórias, capazes, em certos arroubos, até mesmo de fazer um frade de pedra verter copiosas lágrimas. Mas o jovem advogado trazia um novo estilo para a plateia. E desenvolveu o seu trabalho em tom coloquial, todo voltado para os jurados, não para o público. A sua argumentação – simples, direta, desataviada – levava tudo por diante, como um trator que fosse movido pelo racionalismo cartesiano.


Primeiro, traçou o quadro socioeconômico, submundo onde nascera e vivera a acusada, no seu marginalismo gritante. Depois, entrou no exame dos autos, apontando falhas na formação da culpa e recorrendo aos tratadistas para dar embasamento doutrinário à sua argumentação em favor da absolvição, mesmo porque, enfatizou, a sociedade não poderia condenar as suas próprias vítimas. Na peroração, executou uma espécie de serenata de Tosselli, comovendo profundamente o conselho de sentença e o auditório.


Fôra realmente uma revelação das mais impressionantes já acontecidas no histórico pretório, mas não nos moldes esperados pelos antigos fãs dos criminalistas românticos e folhetinescos, de que era paradigma o grande Pereira da Cunha, talvez o maior orador do júri porto-alegrense em todos os tempos. Saí empolgado do Tribunal e com aquele nome na cabeça: Alberto Pasqualini.


Passados uns poucos dias, nem uma semana, eu estava lendo um romance de Pitigrilli no quarto da pensão onde morava, na rua Riachuelo, quando batem fortemente na porta, com os punhos fechados, um Deus nos acuda. Fui abrir e era o tenente Ivan Cabral da Silveira, todo desfeito, transtornado.


Ele chegara há poucos dias do Rio, para servir na guarnição local. Ainda estava no período de trânsito, não havia se apresentado no Quartel General e não conhecia ninguém na cidade, a não ser a mim e outros rapazes, moradores daquela pensão, onde ele também se hospedava.


Os outros rapazes trabalhavam em bancos, em repartições públicas, no comércio. Embora ocioso, frequentando diversos lugares, diurnos e noturnos, menos as aulas, encontrava-se casualmente na pensão, àquela hora. Então o tenente Ivan Cabral da Silveira, não tendo outra pessoa a quem recorrer, foi bater na minha porta e desfechou o seu drama, à queima-roupa:


- “Fui obrigado a matar um sujeito, preciso dum advogado”.


Realmente, o tenente acabara de assassinar um alfaiate, estabelecido nas vizinhanças da pensão, tendo ficado combinado entre nós, no momento, que ele iria se apresentar no Quartel General e eu iria procurar o advogado. Fui ao escritório do jovem bacharel que tanto me havia impressionado poucos dias antes, ao fazer sua estreia no Tribunal do Júri. E esta foi a segunda causa de Alberto Pasqualini no foro criminal de Porto Alegre.


Enquanto corria o processo, o tenente Ivan Cabral da Silveira, já então meu amigo, foi recolhido ao quartel do 7º Batalhão de caçadores, na época comandado pelo bravo coronel Benedito Acauan. E quando foi uma certa tarde do mês de outubro, exatamente “a las cinco en punto de la tarde”, foi aquele esparramo na cidade: tinha rebentado a Revolução de 30, o Quartel General havia sido invadido e dominado, mas o 7º Batalhão de Caçadores resistia, com os revoltosos pertencentes à corporação, depois de lutarem dentro do Quartel, tendo saído para a rua e voltado a atacá-lo pelo lado de fora, ajudados por outros contingentes revolucionários, que terminaram dominando a situação.


Entre os que se destacaram na ação contra o 7º Batalhão de Caçadores estava o tenente Ivan Cabral da Silveira. Comissionado no posto de capitão, fez toda a campanha de 30, apresentando-se após a vitória para ser julgado (e absolvido) com notável desempenho do grande advogado Alberto Pasqualini.


(Setembro, 1978)


Capa: Jairo Devenutto


Fonte: Reverbel, Carlos. Saudações Aftosas. Porto Alegre, Martins Livreiro, 1980, p. 21/23.

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