Parece que está chegando a hora de todo mundo apertar o cinto, até a esquerda festiva. Este ano de 79 vai ser fogo na roupa. A gíria já passou, ficou obsoleta, mas não pode deixar de reconhecer que vem a calhar.
A última vez que ouvi esta expressão foi há uns quinze anos, proferida pelo Mosquito, um fotógrafo de jornal, discípulo do grande Barreto. Referia-se ele à viagem que iria fazer no dia seguinte, de trem para São Paulo. E meio alto, como era de seu costume, não parava de repetir: vai ser fogo na roupa.
Talvez o Mosquito já estivesse tocado pela premonição do que iria lhe acontecer naquela viagem. Numa de suas incursões ao bar do trem, errou a porta, no exato momento em que a composição atravessava uma ponte, sendo tragado por um rio paranaense, cujo nome não foi incluído na autópsia.
Quando se deu essa tragédia ferroviária o Barreto já havia desaparecido, também vítima de um acidente, mas em circunstâncias prosaicas. Foi colhido por um automóvel, nas proximidades de sua residência, situada no Menino Deus. Não estou bem lembrado, mas parece que não morreu na hora, sendo hospitalizado, etc, e tal.
Por ocasião da Revolução de 23 o Barreto teve destacada (e arriscada) atuação no jornal “Última Hora”, que então se editava em Porto Alegre, sob a direção de Lourival Cunha (vulgo Barão do Cemitério) e que movia cerrada oposição ao governo do Dr. Borges, primeiro fazendo a campanha assisista e depois dando cobertura à Revolução.
O Barreto era repórter do atrevido órgão. E quando foi um belo dia teve uma excelente ideia: reeditar o “Antônio Chimango”. A primeira edição havia saído em 1915, estava completamente esgotada. Providenciou então na execução da segunda, imprimindo-a clandestinamente, ocasião em que o famoso “poemeto campestre” foi utilizado e ganhou grande popularidade na luta contra o borgismo.
Esta foi a primeira de uma série de reedições da obra-prima de Ramiro Barcelos, cujo levantamento completo acaba de ser feito pelo Júlio Petersen, aliás possuidor, na sua notável Rio-Grandina, de todas as publicações do “Antônio Chimango”, assim como de inúmeras raridades bibliográficas, menos a “Divina Pastora”, de Caldre e Fião.
Por sinal a referida obra é a mulher fatal dos bibliógrafos gaúchos, já tendo alguns cometido os maiores desatinos na paixão com que a procuram. Entre acertar na Loteca e encontrar a “Divina Pastora”, eles ficariam com a segunda opção, seguramente.
Terminada a Revolução de 23, Barreto teve outra excelente ideia: editou um álbum de fotografias, fixando vultos e acontecimentos relacionados com o episódio que encerrou a era borgista no Estado, selando, nos termos do Tratado de Pedras Altas, a vitória do Partido Libertador.
Além desse álbum (o melhor documentário fotográfico editado sobre a Revolução de 23, trabalho do Barreto), existe um documentário cinematográfico filmado por um amador (o Dr. Benjamin Camozato, cirurgião dentista), hoje pertencente ao médico e historiador Nicanor Letti. Trata-se de uma realização surpreendente pela perícia do operador, apresentando, em mais de duas horas de projeção, cenas do confronto armado entre libertadores e chimangos.
Parece que o Dr. Camozato errou de profissão, devia ter sido cinematografista. Seja como for, deixou um dos documentários mais singulares do nosso acervo histórico.
Quando a “Última Hora” fechou, o Barreto resolveu mudar de setor dentro da imprensa porto-alegrense. Abandonou a pena e passou a empunhar a máquina fotográfica. Percebera que havia chegado o momento da reportagem ilustrada no jornalismo local. E tornou-se um inovador, valorizando-se profissionalmente, pois como repórter fotográfico seria mais bem pago. Terminou os últimos anos de vida no “Diário de Notícias”, também já falecido.
Não trabalhávamos no mesmo jornal mas éramos amigos e seguidamente nos encontrávamos nos botecos ou nos locais de reportagem, mantendo a cordialidade, o que nem sempre acontecia entre outros colegas, por causa da luta do que então se chamava “furo”.
Era no tempo do magnésio, com o respectivo estrondo e a consequente fumaceira. A máquina do Barreto era atarraxada em cima do alto tripé, constando de uma espécie de gaita de foles ligada à objetiva, através da qual o operador regulava a lente do aparelho, com a cabeça coberta por um pano preto, mas o do Barreto era roxo. Depois desse cerimonial, ele retirava a tampa que protegia a lente e acionava a pistola de magnésio, o que era feito apenas nos ambientes fechados, em geral bastando a luz solar para o engenho funcionar.
Foi para carregar o seu volumoso material de trabalho que o Barreto, já com avançada idade e sempre meio alto, aliciou o Mosquito, retirando-o da casa noturna onde exercia, apesar de menor de idade, desenvoltas funções de mandalete do mulherio. E terminou fazendo de seu jovem e expedito carregador um competente fotógrafo de jornal.
O Barreto sempre foi inconformista, tendo utilizado a pistola de magnésio como instrumento de contestação social. Boêmio e muito chegado ao povo, nas reportagens de rua e nas policiais usava o instrumento com delicadeza e moderação, deixando de carregar a mão no magnésio. Mas quando lhe mandavam fotografar banquetes das classes conservadoras, reuniões políticas ou saraus da alta sociedade, costumava deflagar descomunais cargas de magnésio, com estrondo de estremecer as vidraças e encher o ambiente de fumaça, causando, não raro, sérios incidentes e alguns acidentes. E houve ocasiões em que ele próprio se acidentava, com a explosão do magnésio lhe chamuscando o rosto.
Uma vez, no Restaurante Guilosso, o Barreto foi retirar a fotografia do Domingos, então glorioso jogador de futebol, dispondo seu instrumental de modo a colocar a pistola de magnésio um metro acima da cabeça do Dr. Margenat, conhecido oftalmologista local que fazia seu repasto em mesa próxima. Foi tamanho o estrondo e tanta a fumaceira dentro do restaurante que o idoso e responsável esculápio (aliás, especialista em operações de catarata) caiu da cadeira, estabelecendo-se a maior confusão no saudoso estabelecimento gastronômico do velho Emílio e Dona Ida.
Mas em meio a todas as conflagrações o Barreto sempre saía bem, pois era muito popular, emérito piadista, ótimo amigo e grande repórter fotográfico, em quaisquer circunstâncias, principalmente no segundo tempo de suas libações diárias. Barreto amigo, Rivadávia amigo – quanta saudade!
(Fevereiro, 1979)
Fonte: Reverbel, Carlos. Saudações Aftosas. Porto Alegre, Martins Livreiro, 1980, p. 43/45.
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