segunda-feira, 10 de julho de 2023

Borges por João Neves da Fontoura (Carlos Reverbel)

 

O presidente e a bailarina

Na carência da bibliografia sobre Borges de Medeiros, as Memórias de João Neves da Fontoura talvez reúnam as melhores páginas já escritas a respeito do poderoso chefe republicano, em que pese a relação de dependência partidária e a afeição pessoal que os vinculava.

Entre outras, esta passagem é bastante ilustrativa:

Como já assinalei” - sublinha o memorialista - “o Sr. Borges de Medeiros foi, no poder, o homem solitário. Sem confidentes nem conselheiros. Assessores, mesmo, a rigor nunca os teve. Nem a família se intrometia na política ou se arrogava o direito de participar da administração do Estado ou da direção do Partido. As mensagens do Sr. Borges de Medeiros, seus discursos, seus despachos, não eram tão somente obras dele, como os escrevia do próprio punho, com aquela letra magnífica – igual, cheia, regular, de caracteres bem desenhados, letra que conserva, apesar dos anos, a beleza do antigo talhe. Quando cometia a outros a elaboração de projetos, não o fazia para depois apresentá-los como de sua autoria. Nomeava por decreto as pessoas escolhidas e mais tarde se limitava a corrigir ou alterar, a seu juízo, o trabalho que lhe fosse apresentado. Assim aconteceu com a reforma da Lei da Organização Judiciária”.

Em fins de 1925, quando ia entrar no penúltimo ano de seu terceiro mandato presidencial, Borges de Medeiros convidou Sérgio Ulrich de Oliveira para Secretário da Viação e Obras Públicas. Esta escolha foi interpretada, na época, como sinal de que o novo secretário seria o substituto de Borges de Medeiros na presidência do Estado.

A propósito, comenta o memorialista:

Era, entretanto, natural que a escolha de Sérgio de Oliveira para a pasta de Obras Públicas despertasse, no mundo político, a suposição, perfeitamente razoável, de que as preferências do Sr. Borges de Medeiros se haviam fixado na pessoa do seu novo secretário, para sucedê-lo. Sérgio representava, sem favor nem exagero, uma das melhores expressões, de conjunto, no seio do Partido Republicano. Caracterizava-o – primus inter pares – a harmonia entre os predicados morais e mentais. Insigne advogado, exercia a profissão com os rigores de uma ética exemplar. Fronteiriço, tinha da zona de seu berço as qualidades dos homens, sem os defeitos. Cultura esmerada nos domínios do Direito, da Filosofia Política, da Literatura, era um orador diserto, falando sem arroubos mas fiel à máxima de Quintiliano: quem sabe bem diz bem. Desde o início de sua vida, revelou profunda compreensão quanto à prevalência dos deveres sobre as conveniências.”

Tratava-se, enfim, de um homem público que, seja como político, seja como pessoa, quer pela integridade moral e pela firmeza de caráter, quer pela inteligência e pelo saber, reunia todas as condições para empunhar as rédeas do governo, estando, assim, perfeitamente à altura de recebê-las das mãos de Borges de Medeiros, na sua austeridade e na sua intransigência. E tinha-se como certo de que Sérgio de Oliveira seria o futuro presidente do Estado, embora Borges de Medeiros mantivesse rigoroso silêncio a respeito, como era de seu feitio de esfinge.

Quando foi um certo dia, já em fins de 1926, ocasião em que começara a ser organizada a chapa republicana para a Câmara dos Deputados, Borges de Medeiros mandou chamar Sérgio de Oliveira, comunicando-lhe que seu nome iria fazer parte da respectiva nominata.

Sérgio no dia seguinte” - informa o memorialista - “com a sua habitual elegância, exonerou-se da Secretaria, recolhendo-se à sua casa de Uruguaiana. Pequena não foi a decepção dos que nele anteviam o sucessor do Dr. Borges de Medeiros na presidência do Estado”.

Começou, então, a correr o boato de que Sérgio de Oliveira havia perdido a oportunidade de chegar ao governo do Estado porque teria se deixado “enfeitiçar pelas graças” de uma bailarina espanhola, em atuação no Clube dos Caçadores, famoso cabaré da época.

Embora o político uruguaianense fosse viúvo e tudo tivesse acontecido – se é que realmente aconteceu – na maior discrição, teria sido quanto bastou para que Borges de Medeiros, informado do episódio por um espírito de porco, que sempre os há, segundo Nelson Rodrigues, passasse a pensar noutro nome para substituí-lo. E esse outro nome não foi outro senão o de Getúlio Vargas.

O episódio deve realmente ter acontecido, de acordo com a sábia filosofia de que onde há fumaça há fogo. E dele se conclui que, se não fosse o célebre Clube dos Caçadores, com as suas importações de bailarinas espanholas, cançonetistas francesas e outras “artistas internacionais”, a história de 1930 para cá poderia ter sido um pouco diferente.

João Neves da Fontoura, por sua vez, encara o episódio, nas suas valiosas Memórias, da seguinte maneira:

De tudo quanto acabo de narrar, decorre uma inevitável filosofia: como teria sido diferente a história contemporânea do Brasil se, em lugar de Vargas, o Sr. Borges de Medeiros houvesse adotado, em 1927, a candidatura de Sérgio de Oliveira à presidência do Rio Grande!”.



Capa: Tânia Porcher

Foto: Jorge Rolla

Fonte: Reverbel, Carlos. Barco de papel. Porto Alegre: Editora Globo S.A., 1978, p 98/101.

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