segunda-feira, 10 de julho de 2023

Florianópolis, 1934 (Carlos Reverbel)

 

O lagarto e o camelô

Por volta de 1934 fui dar com os costados na ilha de Santa Catarina, terminando a viagem como repórter de um jornal de Florianópolis. Era no tempo em que o Palácio patrocinava o direito de ir e vir, sem ônus para o Tesouro. Um telefonema para o agente da Costeira resolveu, na hora, o problema da passagem, colocando em termos reais a aventura que me borbulhava na imaginação. E assim fiz o batismo de mar, barra a fora, num barco lerdo e acanhado, porém sincero: o Comandante Capela.

O jornal, que fazia oposição sistemática, teimando em defender a política decaída em 1930, realizava o milagre de ainda sair todos os dias. Era composto à unha, por velhos tipógrafos, todos grandes sujeitos. Ainda mantinham a tradição da classe, antigamente muito chegada às belas-letras. Tomavam intimidade com o “colega” Machado de Assis e cada qual se julgava o maior conhecedor de Cruz e Sousa. As apostas em que se empenhavam, para tirar a teima, eram capazes de levá-los a declamar as obras completas do lendário poeta catarinense.

Na redação, éramos apenas três gatos pingados. Um desembargador aposentado, responsável pelo artigo de fundo. O secretário, gênero pé-de-boi, que fazia, praticamente, o jornal todo. E este seu criado, no campinho do noticiário geral, aliás, muito despovoado, pois nunca havia espaço para os acontecimentos apartidários. O diretor só aparecia para dar as tintas políticas ou para salvar o valente órgão, alcançando-lhe, pouco antes de exalar o último suspiro, magra pecúnia, sempre captada entre os mesmos (e poucos) correligionários, mas que nunca deixava de reunir o estritamente necessário para prolongar-lhe os estertores.

A vida na ilha barriga-verde, naquele tempo, não podia ser mais amena e dadivosa. O cacho de bananas, que serviria, em caso de aperto, para fornecer proteínas por uma semana inteira, costumava ser ofertado a menos de 500 réis. O peixe só faltava pedir licença para fugir do mar e invadir as cozinhas, precipitando-se nas panelas, de ponta-cabeça. Mas sempre preferi na beira da praia, preparado em lata de querosene marca Jacaré, sobre o braseiro crepitando num buraco feito na areia. Aprendi a preparar e degustar a especialidade numa colônia de pescadores, segundo a clássica receita de camões:

Não se aprende, Senhor, na fantasia,

sonhando, imaginando ou estudando,

senão vendo, tratando e pelejando”.

Como moradia, um quarto de pensão, cujo único luxo consistia em ser individual. Mas, um belo dia, a dona do estabelecimento pediu permissão para nele introduzir outro hóspede. Como a mensalidade nem sempre era atendida de modo pontual, não tive outra saída senão capitular, como Koutouzov em Austerlitz. E logo pude constatar, com perplexidade, que, em vez de um, apareceram dois novos hóspedes: o Aristides e seu companheiro Juquinha.

Nesse preciso momento, o Graf Zeppelin começou a sobrevoar a bela cidade de Florianópolis que, vista das alturas, a voz geral comparava a um presépio. Entretanto, era tal minha depressão, em face da dupla invasão do meu domicílio, que não tive ânimo, sequer, para chegar à janela e assistir ao “acontecimento do século”. Em estado de melancolia profunda, fui a única alma, em todo o litoral brasileiro, que não viu a passagem do dirigível Zeppelin, navegando precisamente na rota em que, ao passar pelo Recife, levaria o poeta Ascenso Ferreira a exclamar, pela voz de uma de suas criaturas folclóricas:

Meu Deus! Como a pomba do Espírito Santo cresceu!”

Toca-me agora a vez de também exclamar:

Meu Deus! Como a gente se engana neste mundo!”

Reunidos sob o mesmo teto, tornamo-nos os melhores amigos. Como o meu trabalho era noturno e o de Aristides e Juquinha se realizava durante o dia, a coabitação quase desaparecia nessa providencial diferença de horários. Assim, se quisesse encontrar os companheiros de quarto, teria de ir até o Mercado Público, onde eles exerciam a sua admirável arte.

Para atrair o público, Aristides retirava o Juquinha de dentro de uma sacola, colocava-o carinhosamente sobre a calçada e começava a dialogar com o inteligente parceiro, também revelando, por sua vez, grande talento histriônico. Formada a roda de basbaques, que nunca faltavam, renovando-se como em sessões permanentes de cinema, Aristides recolhia o Juquinha à respectiva sacola e começava a apregoar e vender a sua mercadoria, a toda velocidade.

Era um medicamento infalível, segredo de curandeiros indígenas do Alto Amazonas, elaborado com poderosas resinas medicinais, que tinha a propriedade de curar todas as doenças e fechar o corpo do paciente para as vindouras. Só não iam na conversa os companheiros de quarto do genial camelô, eu e o lagarto Juquinha, acostumados ao engenho com que ele fabricava, usando água da pena e uma anilina esverdeada, a sua milagrosa maravilha curativa.



Capa: Tânia Porcher

Foto: Jorge Rolla

Fonte: Reverbel, Carlos. Barco de papel. Porto Alegre: Editora Globo S.A., 1978, p 90/92.

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