segunda-feira, 10 de julho de 2023

Cada coisa em seu lugar (Carlos Reverbel)

 

Tigre de papel

O principal argumento contra o divórcio fundamentava-se na ideia de que a sua instituição implicaria a dissolução da família. Ora, ao que me consta, a família ainda não terminou em nenhum país (e são quase todos) onde já existia o divórcio.

A decadência do mundo ocidental não se faz sentir somente sobre a família: atinge a sociedade como um todo. E não deixa de ser profundamente significativo que isto esteja acontecendo depois de dois mil anos de vigência da chamada civilização cristã…

Ao longo das discussões sobre o divórcio, consegui reunir elementos que me permitiram identificar um tipo muito ilustrativo de antidivorcista. Refiro-me aos indivíduos que, já tendo algumas ligações irregulares, sempre aceitas pelo café society, argumentavam que, com a instituição do divórcio, isto deveria tornar-se mais difícil, pois desapareceria o impedimento que não permitia a legalização de tais uniões.

A propósito, ouvi mais de uma vez a seguinte afirmação, geralmente proferida por gente fina: “como sou a favor da amigação, não posso deixar de ser contra o divórcio.” Outros diziam a mesma coisa, mudando apenas as palavras: “como sou contra o casamento, também sou contra o divórcio”.

Felizmente, o número de antidivorcistas dessa espécie (a verdadeira desagregadora da família) não foi suficiente para decidir a questão a seu favor…

Houve, entretanto, grande número de inocentes úteis que, embora por motivos tão diferentes quanto bem-intencionados, colaboraram bastante no mesmo sentido desagregador. Entre eles, os três ilustres senadores pelo Rio Grande do Sul. Aliás, pouco faltou para que a nossa representação na Câmara Alta fosse a única a votar, em massa, contra a instituição do divórcio, divorciando-se, assim, da maior parte de seu eleitorado.

Durante o período de mais de vinte anos em que a emenda divorcista esteve em discussão no Congresso Nacional, o único Presidente da República que se manteve isento e equidistante, em relação ao problema, foi o Gen. Geisel.

O atual presidente não exerceu qualquer espécie de pressão, quando a matéria foi discutida e votada pelo Congresso, pela simples e boa razão de que, sendo um homem de convicções, não iria barganhar politicamente em torno da questão, como outros o fizeram.

Subsidiariamente, a instituição do divórcio prestou um grande serviço ao País e, em escala ainda maior, à própria Igreja Católica, pois veio demonstrar que, ao atravessar os umbrais do templo, vindo para a rua tomar partido em questões profanas, como são as de Direito Civil ou, então, as de política partidária, o clero fica exposto a fazer as vezes de tigre de papel, como acaba de acontecer, nas circunstâncias que cercaram a consagração familiar da emenda divorcista.

Por sua vez, o grande líder da campanha pelo divórcio, senador Nelson Carneiro, ao convidar a Igreja Católica a colaborar, no sentido da boa regulamentação da matéria, visando, precisamente, preservar a família, não desagradá-la, deu mostras de largueza de vistas e superioridade de princípios com que sempre se conduziu, ao longo de mais de vinte anos, na luta pela implantação de sua tese.

A luta pela instituição do divórcio não era uma questão política. Entretanto, nela se engajando politicamente, a Igreja Católica terminou sofrendo, sem a menor necessidade, uma derrota política. E fez com que terminasse o tabu de que pode dispor à vontade do povo brasileiro, tanto dentro, como fora dos templos, tanto em capítulo de fé, como em matéria profana.

Como dizia um sábio da Umbanda, a melhor filosofia, em matéria de religião e política, é a do velho ditado: um lugar pra cada coisa e cada coisa em seu lugar.



Capa: Tânia Porcher

Foto: Jorge Rolla

Fonte: Reverbel, Carlos. Barco de papel. Porto Alegre: Editora Globo S.A., 1978, p 9/11.


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