segunda-feira, 10 de julho de 2023

Gíria e jargão (Carlos Reverbel)

 

Nada mais perecível, em matéria de linguagem, do que a gíria. Pouca gente terá lembrança, por exemplo, de que a palavra pacote já significou dinheiro.

Nos bons tempos dos mil-réis, um pacote correspondia a um conto de réis. E era um dinheirão. Com cinco pacotes comprava-se quadra e meia de campo.

Aliás, dinheiro é uma das palavras que figuram no Aurelião com maior número de acepções. Nada menos de setenta, a grande maioria em gíria, o que demonstra o alto apreço e a tocante afeição que o responsável público dispensa ao chamado vil metal. E ali ainda se encontra, embora já esteja morta e enterrada, a expressão pacote significando grana, arame, boró, bagarote, erva, bronze, gaita, massa, níquel, tutu, etc. etc.

Tendo desaparecido do linguajar do povo, na acepção de dinheiro, a palavra pacote também desapareceu do noticiário dos jornais com aquele significado. Mas acaba de voltar, com ímpeto ainda maior, ostentando roupagem bastante sofisticada, de acordo com o seu novo status.

Deixou de fazer parte da gíria, isto é, do zé-povinho, para integrar uma categoria lexicográfica mais exclusiva: o jargão. E foi recebida de braços abertos pelos mais astutos cultores do economês que assola o País.

Passamos assim, da noite para o dia, a ser brindados com pacotes de reformas, pacotes de projetos, pacotes de iniciativas, pacotes de abril, pacotes de providências, pacotes de resoluções, pacotes de decretos, pacotes de portarias e até pacotes de golos, sem dúvida os pacotes de maior impacto entre todos os pacotes.

Por sua vez, o dr. Brossard começou a proferir discursos em pacotes, pois os que tem proferido, ultimamente, não cabem numa única sessão, tendo de ser desdobrados em três, performance que somente o conselheiro Rui Barbosa conseguia realizar, nos seus melhores momentos senatoriais.

Talvez seja uma reação do Legislativo, em pacotes, aos pacotes do Executivo, sem dúvida bem mais ameaçadores, sobretudo quando expedidos pelo serviço de empacotamento das autoridades de área econômico-financeira.

Ainda não dispus de tempo suficiente para empreender a pesquisa, que deve ser objetiva, acurada e isenta, à maneira dos scholars norte-americanos, mas tenho para mim, até segunda ordem, que o introdutor na província de São Pedro da palavra pacote, na sua nova e vitoriosa conotação, foi o dinâmico secretário Mário Ramos, quando andou promovendo pacotes turísticos internos, aliás contra minhas mais arraigadas e definitivas convicções, pois nesta matéria sou mais inclinado para os pacotes turísticos externos, principalmente quando se dirigem a Paris, apesar dos parisienses, gente que nunca foi de meu agrado, nem do José Ronaldo Faleiro mas, em compensação, e encantadora Berenice Otero a adora.

A onda que veio projetar a palavra pacote no jargão do economês, sem dúvida a linguagem mais eloquente do País, nas atuais circunstâncias político-administrativas, chegou em momento oportuníssimo, quiçá, salvador, pois a expressão começara a cair em desuso até mesmo no comércio varejista. Em substituição ao tradicional pacote, as mercadorias passaram a ser metidas dentro de sacolas, quase sempre de matéria plástica, como se sabe um produto dificilmente degradável, logo, antiecológico, logo, antilutzerberguiano, logo, fatal ao gênero humano. E quando acontecem de serem embrulhadas, pelos mais conservadores, diz-se que as mercadorias foram embaladas, não empacotadas, sendo entregues ao freguês na seção de embalagem, não na de empacotamento.

Assim, se não fosse o economês a palavra pacote estaria condenada ao desaparecimento, restando-lhe uma única possibilidade de sobrevida, ainda assim na forma composta: conto do pacote. Aliás, esta expressão idiomática envolve dúvida atroz, pois ainda não se conseguiu definir quem é o maior vigarista no conto do pacote, dividindo-se as opiniões dos exegetas entre o agente e o paciente.



Capa: Tânia Porcher

Foto: Jorge Rolla

Fonte: Reverbel, Carlos. Barco de papel. Porto Alegre: Editora Globo S.A., 1978, p 30/32.

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