A soja, essa criminosa
Pelo que me foi dado apreender, na leitura de uma correspondência de Brasília para a imprensa local, não tarda o momento em que a soja irá parar no banco dos réus, acusada de subversão ou, talvez, de terrorismo, o que seria ainda pior.
Tive um amigo espanhol que atribuía ao Papa tudo quanto acontecia de catastrófico neste mundo de Deus. A gente nem bem terminava de contar uma dessas histórias de arrepiar os cabelos e ele já apontava o principal responsável, sempre na mesma frase, incisiva e cortante: foi o Papa.
Estou receoso de que o mesmo irracionalismo venha colocar a soja no lugar do Papa, dando ensejo a uma obsessão muito mais doentia, pois o que não passava do estribilho monocórdio de um único indivíduo, anarco-sindicalista mas inofensivo, periga transformar-se no coro orfeônico com que inúmeras pessoas, bem intencionadas, mas mal-avisadas, poderão prejudicar ainda mais a economia agrícola do Estado.
O feijão desapareceu: foi a soja. Não há leite: foi a soja. Vai faltar arroz: foi a soja. As coisas estão se encaminhando para isso. E não estamos livres de a qualquer momento o verbo de Gaspar Martins baixar sobre algum orador em transe mediúnico, levando a bradar num terreiro de Umbanda que a soja é a oitava praga do Egito.
Não se pode, entretanto, deixar de reconhecer que nos encaminhamos, arriscadamente, para a monocultura da soja e que isto é um perigo, como todo o mundo está farto de saber. Mas não aconteceu por acaso. Aconteceu simplesmente em razão de desacertos cometidos pelos autores da política agrícola brasileira, em que, entre outros quiproquós, o Ministro da Agricultura manda e o Ministro da Fazenda desmanda. Se a soja (pelo menos no Rio Grande do Sul) é o único produto que proporciona alta rentabilidade, como podem esperar que a “companheirada” vá plantar batatas?
Não foi por culpa dos plantadores, e ainda menos da providencial soja, que se criou esta desequilibrada realidade agrícola. Como o leiloeiro só bate o martelo ao maior lance, a turma que acredita no trabalho, seja ele agrícola ou não, só dá murros e sua a camiseta quando o negócio vale a pena.
A função de uma nova política agrícola, de que precisamos urgentemente, não há de ser estragar o negócio da soja, mas fazer com que outros negócios rurais se tornem razoavelmente lucrativos, sem dúvida a única forma de evitar-se a sojicracia.
Há pessoas em revoada pelos céus do País com a incumbência de resolver tais problemas, não me cabendo, como aos demais 100 milhões de brasileiros, outro papel senão botar a boca no mundo, pois elas têm a obrigação de saber, com a sua alta tecnologia, o que precisa ser feito para colocar tudo nos devidos lugares. Foram escolhidas e chamadas para isso, com mordomia ainda por cima.
Uma agricultura como a nossa, aqui no Rio Grande, em que só a lavoura de soja prospera, tornou-se capenga, andando numa perna só, por artes de Saci Pererê. E não há de ser esvaziando o saco de soja que se conseguirá encher o saco de outros grãos, salvo se ocorrer um grande milagre genético, com a ajuda do Arquiteto do Universo, plantando-se feijão-soja e colhendo-se feijão-preto, por exemplo.
A monocultura não é um crime dos que a praticam: é um erro de política agrícola.
Entretanto, caso a economia agrícola rio-grandense venha a sofrer um colapso, em razão da possível frustração de uma safra de soja, quer na lavoura, quer no mercado externo, é bem possível que todas as responsabilidades sejam transferidas para as largas e oleaginosas costas da própria soja, essa criminosa.
O confisco cambial talvez já seja uma penalidade, imposta por antecipação.
Capa: Tânia Porcher
Foto: Jorge Rolla
Fonte: Reverbel, Carlos. Barco de papel. Porto Alegre: Editora Globo S.A., 1978, p 33/35.
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