segunda-feira, 10 de julho de 2023

Cerro Formoso (Carlos Reverbel)

 

Um jovem, que viria a ser brazonado do Império, andava tropeando no município de Rio Pardo, quando encontrou uma carreta atolada na estrada. Como bom campeiro, foi logo tratando de ajudar os viajantes naquela dificuldade. O lerdo e pesado veículo, puxado por diversas juntas de bois, com outras tantas de reserva (ou de muda, como se dizia na campanha), conduzia uma família, de Porto Alegre a Rio Pardo. Era como se viajava na época, por terra.

Nas interessantes memórias de João Daudt há uma descrição que documenta admiravelmente esse primitivo meio de transporte. Só que o memorialista descreve outra viagem e outro roteiro, já então de Santa Maria a Rio Pardo. E nele não se registrou nenhum episódio fora do comum, como o da carreta atolada.

Nesse encontro, ageste e imprevisto, o jovem tropeiro conheceu a moça (citadina e porto-alegrense), que se tornaria sua esposa, formando-se, assim, um tronco genealógico que conta hoje com cerca de mil descendentes.

No dia que fez 140 anos esse encontro em campo aberto, foi lançado um livro, em sessão de autógrafos, realizada na Livraria do Globo, no qual um dos numerosos descendentes do então jovem casal – o historiador Tácito van Langerdonck – reconstitui a árvore genealógica daqueles que seriam o Visconde e a Viscondessa de Cerro Formoso.

O primeiro título nobliárquico outorgado a Cerro Formoso, no grau de barão, foi-lhe conferido por D. Pedro II, em reconhecimento a serviços prestados na Guerra do Paraguai. Quando Uruguaiana ainda estava cercada pelas tropas de Estigarribia, o antigo tropeiro de Rio Pardo, já então grande estancieiro, mandou alistar 50 escravos de sua propriedade, no Exército Brasileiro, fazendo, ainda, a doação de centenas de animais muares e cavalares. O gesto não teria qualquer grandeza humana e, mesmo, cívica, se também não tivessem sido alistados, juntamente com os escravos, os quatro filhos varões de Cerro Formoso.

Com exceção de um, que regressou após dois anos, em razão de grave enfermidade, contraída no chaco paraguaio, os demais lutaram até o fim da campanha, chegando todos ao oficialato, tendo um deles, que atingira o posto de coronel, se tornado um dos mais destacados combatentes do exército de Osório, a ponto de ser distinguido, em ordem-do-dia firmada pelo Conde d'Eu, como “superior a qualquer elogio”. Chamava-se Antônio Leal de Macedo.

Esse bravo rio-grandense, um dos poucos oficiais que fez os cinco anos de guerra, sem qualquer interrupção, tomando parte saliente nas grandes ações militares desencadeadas pelo Gen. Osório, distinguiu-se ainda por uma “gauchada”, possivelmente única em toda a campanha do Paraguai. Tendo partido para a guerra, da estância de seu pai, situada no município de Lavras do Sul, no cavalo de sua predileção, ao regressar da luta, cinco anos depois, montava o mesmo animal.

De volta ao pago, ele mesmo desencilhou o pingo, soltou-o no potreiro fronteiro à casa e nunca mais permitiu que fosse montado, deixando-o morrer de velho, no fundo de uma invernada. Foi como que um reconhecimento por serviços prestados, marcando um dos episódios mais ilustrativos da identificação que havia, no antigo Rio Grande campeiro, entre o homem e o cavalo, tanto no trabalho, como na guerra.

Senhor de mais de 10 léguas de sesmaria, que se alongavam através dos municípios de Caçapava, Lavras do Sul, São Sepé e São Gabriel, o Visconde do Cerro Formoso, ao receber D. Pedro II em sua estância, em 1865, surpreendeu o Imperador com uma retreta, aberta com o Hino Nacional e executada pela sua banda de música particular, formada com escravos por um maestro italiano, que mantinha permanentemente em seu estabelecimento.

O livro de Tácito van Langendock, não se limitando à pesquisa genealógica, apresenta notas biográficas, a começar pelas do Visconde de Cerro Formoso, através das quais se podem recolher fatos e episódios bastante elucidativos sobre a vida do patriarcado rural rio-grandense, no século passado.



Capa: Tânia Porcher

Foto: Jorge Rolla

Fonte: Reverbel, Carlos. Barco de papel. Porto Alegre: Editora Globo S.A., 1978, p 87/89.


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