segunda-feira, 10 de julho de 2023

Fernando Ferrari e uma obra (Carlos Reverbel)

 

Como andei fazendo umas pesquisas, no campo da bibliografia rio-grandense, ainda acontece de me pedirem informações sobre a matéria. Outro dia, um bibliófilo amigo, por sinal dos mais excêntricos, pois dá preferência, na sua estante de raridades, a edições recolhidas pelos autores, desejava saber se o saudoso político Fernando Ferrari realmente escrevera um romance, para mais tarde retirá-lo de circulação.

Não sei se o livro chegou a ser renegado pelo autor. Entretanto, posso garantir que foi escrito e publicado, num desses assomos de mocidade que a idade madura em geral repudia. Sem qualquer agravo à memória do autor, mesmo porque ele a seguir afirmaria, superiormente, como eminente homem público – sua legítima vocação – ainda posso garantir que a sua imatura incursão no campo da literatura, em que pese o generoso impulso, foi coisa parecida com o que antigamente se classificava como “um mau passo”.

Se fizermos ligeiro balanço nos livros de paternidade renegada, veremos que Fernando Ferrari, se efetivamente alimentou essa frustração, pode ser relembrado ao lado de muito boas companhias. Sabe-se, por exemplo, que Assis Brasil retirou de circulação as Chispas, seu primeiro e único livro de versos, motivo que a referida obra é hoje das mais cobiçadas e valorizadas raridades bibliográficas, pelo menos entre os colecionadores gaúchos, entre os quais pontifica Júlio Petersen, ex-goleiro, como Albert Camus.

Dá-se, ainda, o caso de certos livros serem retirados das livrarias por outros pudores que não os de natureza estritamente literária. Seria talvez o que tivesse levado João Neves da Fontoura a pelo menos não permitir a reedição do Acuso, a partir de determinado momento de sua carreira política. E temos também casos de obras recolhidas, não propriamente pelos autores, mas pelos seus descendentes, o que tanto pode acontecer por indulgência, como por motivos menos confessáveis, talvez para evitar possíveis comprometimentos, por via ancestral.

O romance de Fernando Ferrari, praticamente desaparecido até mesmo dos abundantes “sebos” do Manoel dos Santos Martins e do José Monteiro de Assis, foi editado em 1943, na cidade de Santa Maria, pela Tipografia da Escola de Artes e Ofícios da Cooperativa dos Empregados da Viação Férrea do Rio Grande do Sul, sob o seguinte título: Mas... e os Sinos não Dobraram.

Na biografia do autor, feita por Jorge Hadelt e impressa em 1960, nas oficinas gráficas da Livraria do Globo, há apenas esta referência sobre a aludida raridade bibliográfica: “Antes de ingressar na Faculdade de Ciências Econômicas, publicou um pequeno romance de caráter social, bem recebido pelos críticos da época”.

A referência é por demais acanhada, senão desenxabida, tendo partido de quem assim se pronunciava a respeito do seu biografado; “Nesta época conturbada por que atravessa o País, o aparecimento de Ferrari é, por assim dizer, uma dádiva divina.” O capítulo final da biografia é uma espécie de apoteose, com várias chaves de ouro, inclusive esta:

O desenvolvimento interior de Ferrari alcançou o limite máximo da perfeição, dando-nos a ideia mais cabal da grandeza humana”.

O transbordamento destas palavras, dedicadas ao homem público que vinha granjeando enorme popularidade e afeições, beirando o fanatismo, faz ilustrativo contraste com a sobriedade da referência ao “pequeno romance de caráter social”, embora com o esclarecimento de que fora “bem aceito pelos críticos da época”, o que não se verificou.

Publicado quando o autor recém-chegara aos 22 anos de idade, o romance de Fernando Ferrari não chegara a ser, propriamente, de “caráter social”, antes girando em torno do tema da ovelha desgarrada, tendo como protagonista um jovem que se desvia da religião e da família e volta à casa paterna como o antifilho pródigo, para afinal ensandecer de todo e morrer danado, entre os túmulos de um cemitério de aldeia, depois de ter causado as maiores devastações humanas nas adjacências.

No que diz respeito ao obituário, a obra tem profundas semelhanças com a mortandade das tragédias antigas. E serviu para demonstrar, sem sombra de dúvida, que os caminhos do autor teriam de ser trilhados fora da literatura. Como, de resto, foram afanosa e dignamente procurados e encontrados, através de exemplar dedicação à vida pública, numa carreira política ainda cheia de esperanças quando foi cortada de modo tão chocante e prematuro.



Capa: Tânia Porcher

Foto: Jorge Rolla

Fonte: Reverbel, Carlos. Barco de papel. Porto Alegre: Editora Globo S.A., 1978, p 81/83.

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