segunda-feira, 10 de julho de 2023

Um orixá, um barco, livros (Carlos Reverbel)


O fato de ter reunido uma grande biblioteca ao longo da vida me propiciou bastante experiência no trato dos livros e, de lambujem, alguns rudimentos de biblioteconomia, adquiridos, naturalmente, por via do autodidatismo, sem dúvida a ciência que mais se afeiçoa ao temperamento do brasileiro, em geral trêfego e borboletante.

Aliás, esta é a segunda biblioteca que consigo amealhar, tendo recebido, por vezes, substancial ajuda de alguns amigos. Moysés Vellinho, por exemplo. Um belo dia o ilustre ensaísta me agraciou com uns dois ou três carrinhos de mão cheios de livros. Vieram, inclusive, diversas raridades bibliográficas, pelo que serei eternamente grato.

Da minha primeira (e também volumosa) biblioteca nem gosto de lembrar. Vendi-a ao correr do martelo, em 1946. Eu fora possuído, naquela ocasião, por um orixá que desejava viver algum tempo em Paris, por meu intermédio. A entidade baixou e não havia jeito de me largar. Tive de obedecê-la, tratando de organizar a viagem. Como o dinheiro era pouco (quiçá, nenhum) tomei a sábia resolução de vender tudo o que possuía, a começar pelos livros.

A travessia aconteceu na terceira e horripilante classe dum vapor cujo nome até hoje me produz calafrios pelo corpo todo: “Felipa”. O barco, que fora transporte de guerra e se mantinha como tal, com beliches de madeira rústica e colchões ralos, onde os passageiros de terceira eram empilhados, ostentava a gloriosa bandeira panamenha, mas era de propriedade duma empresa italiana, que assim furava a proibição de navegar, ainda em vigor para armadores alemães e italianos. Com o Panamá de testa-de-ferro, a Itália começava a voltar aos mares, mas lamentavelmente me tocara o “Felipa”, não o “Cap. Aarcona”, como naquela história da Lia e da Raquel.

Foi uma das primeiras, senão a primeira travessia do Atlântico Sul, depois da guerra, sendo de notar que ainda havia minas no Mediterrâneo, em cuja entrada o nosso piloto foi substituído por um prático. Às vezes a embarcação enguiçava, ficava meio à deriva sobre as ondas e então se fazia uma subscrição a bordo para pagar horas extraordinárias aos maquinistas. Nunca esqueci: quando desembarcamos no cais de Marselha, vi uma francesa, que ficara retida em Buenos Aires durante a guerra, beijar o chão. Outra caiu de joelhos e começou a rezar histericamente.

Na volta, já passados quase dois anos, ainda sofri dissabores por causa da venda de minha biblioteca, a primeira, como foi esclarecido. Alguns autores, que me haviam oferecido seus livros com dedicatória, ficaram chocadíssimos ao encontrá-los nos “sebos”. Ora, isto faz parte do negócio, não havendo mal algum na colocação, em antiquários, de livros com autógrafo dos respectivos autores. É prática corrente em bibliofilia e seu comércio, servindo, inclusive, como fator de valorização do livro. Eu mesmo trouxe de Paris, adquiridos nos buquinistas do Sena, alguns livros com dedicatória do autor a terceiros. E hoje tenho uma ala de minha biblioteca com livros assim valorizados.

Pelos rumos que as coisas tomaram, estou vendo que não será desta vez que terei espaço para transmitir, como pretendera no início, os rudimentos de biblioteconomia que terminei adquirindo, no longo trato com os livros.

Sou de opinião, por exemplo, que a primeira peça duma casa que se deve atulhar de livros é o quarto de hóspedes. Fica-se, assim, armado de excelente desculpa para não mais recebê-los, principalmente se ainda adotarmos o sistema de impregnar o local de naftalina, conforme aconselhava Rui Barbosa.

Outra recomendação que, baseado em minha própria experiência, tomo a liberdade de transmitir aos possuidores de biblioteca é de mantê-la na mais apavorante desordem, de modo que o livro procurado nunca possa ser encontrado. Sob o pretexto de que seria impossível encontrá-los, consegue-se, com essa eficiente técnica, a melhor desculpa para não emprestar livros.

Mas a maior vantagem de possuir uma grande biblioteca é a de dispensar a sua leitura, alegando-se absoluta falta de tempo para enfrentar a enorme massa bibliográfica. O indivíduo que dispõe de poucos livros fica na obrigação moral de devorá-los; o mesmo, entretanto, não se pode exigir daquele que juntou livros aos montes; seria um atentado aos direitos humanos, segundo o intérprete de polonês de Jimmy Carter.




Capa: Tânia Porcher

Foto: Jorge Rolla

Fonte: Reverbel, Carlos. Barco de papel. Porto Alegre: Editora Globo S.A., 1978, p 102/104.

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