O carrapato como guarda aduaneiro
O estudo que faltava, em torno do contrabando no Rio Grande do Sul, acaba de ser publicado por Guilhermino Cesar. Saiu em diversos números do “Caderno de Sábado”.
Aliás, mestre Guilhermino é useiro e vezeiro na pesquisa de assuntos rio-grandenses que ninguém havia tocado. Ele trouxe das Alterosas a vocação do garimpo, não resistindo ao fascínio da mineração nos nossos arquivos e nas nossas origens.
Sem a contribuição desse providencial mineiro (a exemplo do que já fizera, noutros tempos e noutras circunstâncias, o também mineiro Domingos José de Almeida), o Rio Grande do Sul seria menor.
O folclore do contrabando está repleto de “causos” em que se recorre à “histórica” contravenção, nem sempre para fugir do fisco, mas para evitar a burocracia alfandegária, cambial, veterinária, etc.
Surge, então, a figura um tanto encalistrada do contrabandista produzido pela burocracia, principalmente quando se trata de ovinos, pois a situação muda bastante em relação ao gado vacum.
Além de ser muito mais fácil de carregar, na sua condição de animal quase portátil, a ovelha não está sujeita ao carrapato, praga que vem exercendo, sem que ainda se lhe tenha feito ingressar nos quadros do funcionalismo público, enorme função aduaneira.
Pode-se, mesmo, afirmar com a tranquilidade de quem repete as grandes sentenças axiomáticas, que o carrapato tem sido, através da história, isto é, “no tempo e no vento”, o nosso mais eficiente, prestativo e incorruptível guarda aduaneiro.
A primeira pessoa que me alertou para esse aspecto do folclore do contrabando gaúcho foi meu velho e prezado amigo Francisco Marona, bacharel e fazendeiro, no Alegrete.
Os gados uruguaios, pela simples e boa razão de que lá não existe carrapato, contraem, quando são transferidos para o Rio Grande do Sul, uma doença fatal, chamada vulgarmente “tristeza”, que tem como veículo o carrapato.
Se não fosse o carrapato, já então exercendo as suas funções de guarda aduaneiro, a vizinha república amiga teria sido esvaziada de seu rebanho bovino, tantas vezes quantas o preço do gado esteve mais barato, do outro lado da fronteira, o que no momento não é o caso, mas até pouco tempo o foi, como em inúmeras ocasiões no passado.
Faz exceção, dentro desse quadro, Santa Vitória do Palmar, o único município rio-grandense onde não existe o carrapato, sem mérito algum dos carrapaticidas, pois se deles dependesse a eliminação desse parasito, a situação seria como nos demais municípios: na luta entre carrapato e carrapaticidas aquele que sempre levou a melhor, não pairando dúvidas, nesta altura das hostilidades, sobre a imortalidade do carrapato.
Há sempre um espírito de porco para duvidar da imortalidade da alma, mas nenhum ousou até agora, por mais suinícolas que fossem suas entranhas, duvidar da imortalidade do carrapato no esmeraldino pampa rio-grandense.
Se os campos de Santa Vitória do Palmar pudessem espichar e distender-se, que nem borracha de boa qualidade, talvez tivessem conseguido abrigar toda a população bovina do Uruguai, quando os preços ficam abaixo dos nossos. Isto não foi possível, mas, em compensação, os couros do município são os mais valorizados do estado, pelo fato de nunca terem sido atacados pela voracidade do carrapato.
O contrabando, despojado de sua feição meramente contraventora, é uma “coisa séria”, embora a afirmativa possa causar espécie, dita assim de supetão, parecendo uma espécie de camuflagem para justificar a sua prática, sem dúvida o lado menos significativo do fenômeno, não passando de simples lesão ao fisco, com implicações de natureza coercitiva ou penal, quando muito.
No trabalho referido no início desta arenga, Guilhermino Cesar fez o estudo sociológico do contrabando, cuja ocorrência, ao longo da formação rio-grandense, apresenta inúmeras fontes e indicações do maior interesse econômico-social e, ao mesmo passo, histórico-cultural, como ainda político, notadamente em certo momento da longa e áspera luta pela malograda implantação da Colônia do Sacramento, fundada em 1680, face ao vice-reinado do Rio da Prata.
Assis Brasil, quando desenvolveu a teoria dos vasos comunicantes, a propósito do contrabando que então se fazia (ano de 1908), aconselhava, para evitá-lo, que fossem reduzidas as tarifas alfandegárias e de transporte. “Assim” - concluía o ilustre rio-grandense - “não só evitaremos o contrabando de lá para cá, mas até o poderíamos realizar de cá para lá, se não fosse uma revanche pouco em harmonia com o nosso cavalheirismo nacional”.
Não lhe ocorreu invocar os préstimos aduaneiros do carrapato porque, naquela época, talvez o parasito ainda não tivesse completamente erradicado no Uruguai, o que me parece um assunto a ser estudado.
Como no momento o preço do gado no outro lado da fronteira já anda acima do nosso, o contrabando desapareceu. Em tempos ainda recentes, coisa de três, quatro anos atrás, a primeira providência consistia em evitar-se o contato do gado uruguaio com o solo rio-grandense, para não pegar carrapato, motivo pelo qual a carga bovina vinha, em geral, sobre rodas, desembarcando dos caminhões diretamente nos matadouros, mas, ainda assim, aplicando-se inseticidas ou repelentes antiparasitários no fio do lombo dos animais, por via das dúvidas.
Desse modo, o contrabando ficava reduzido ao gado gordo, com as matrizes conservadas do outro lado, para futuros abastecimentos. Preservava-se, dessa forma, com a colaboração do carrapato, o despovoamento dos campos dos nossos amigos uruguaios, mas ficávamos, para prejuízo dos nossos criadores, com uma safra e uma entressafra encilhadas nas nossas. Entretanto, do ponto de vista estritamente econômico, havia esvaziamento no lado de lá e enriquecimento do lado de cá.
O Ten. Gen. Francisco José de Sousa Soares de Andréa, presidente da Província e comandante das Armas da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, permaneceu pouco tempo na governança, mas deixou, de passagem, alguns dos documentos oficiais mais vivos e ilustrativos daquela época.
Num desses documentos, datado de 1840, quando ia em meio o decênio farroupilha, refere-se ao contrabando de fronteira, querendo fazer verve, como era muito de sua feição espiritual, mas, na verdade, antecipando-se ao advento da aviação comercial, como instrumento de “interiorização” do contrabando. Dizia ele:
“Estendam ao longo da linha divisória um exército de mãos dadas, e ainda assim o contrabando há de entrar: o que não passar por entre as pernas dos soldados, passará por cima”.
Hoje em dia, com a revolução dos meios de transporte, o contrabando deixou de ser um fenômeno de fronteira, para assumir proporções nacionais, interiorizando-se a ponto de dispor, inclusive, de aeroportos clandestinos. Não passa, no final das contas, de um dos tantos ramos do gangsterismo moderno, surgindo um pouco por toda parte, até nas esquinas.
O velho contrabando de fronteira, cujo lado humano, impregnado de romântico aventurismo, foi cantado por J. Simões Lopes Neto, não existe mais, tendo desparecido a descendência de Jango Jorge, “um que foi capitão duma maloca de contrabandistas que fez cancha nos banhados do Ibirocaí”. E que “levou a existência inteira a cruzar os campos da fronteira, à luz do sol, no desmaiado da lua, na escuridão das noites, na cerração das madrugadas”. E que “ainda que chovesse reiúnos acolherados ou que ventasse com por alma de padre, nunca errou vau, nunca perdeu atalho, nunca desandou cruzada”. E que “conhecia as querências pelo faro: aqui era o cheiro do açouta-cavalo florescido, lá o dos trevais, o das guabirobas rasteiras, do capim-limão”.
Capa: Tânia Porcher
Foto: Jorge Rolla
Fonte: Reverbel, Carlos. Barco de papel. Porto Alegre: Editora Globo S.A., 1978, p 133/137.
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