A melhor coisa que aconteceu ao porto-alegrense, nos últimos anos, foi poder morar em alguns lugares da cidade onde não há necessidade de ir ao centro.
Eu ainda não desfruto dessa bem-aventurança, mas tenho uma vizinha que há 12 anos não precisava aventurar-se até o centro da cidade.
Outro dia, por uma das fatalidades do destino, ela teve de empreender a incruenta jornada. Chegou, viu e fez meia volta volver, retornando, apavorada, ao ponto de partida, o seu ainda pouco conflagrado bairro residencial, onde, por sinal, há de tudo: supermercados, agências bancárias, butiques em profusão, livrarias, consultórios médicos e dentários, salões de beleza, cabeleireiros, cinemas, restaurantes, etc.
Mas, como o assunto que a solicitara ao centro da cidade era relevante, teve de voltar ao local do susto no dia seguinte, já então devidamente prevenida, de ciência própria, a respeito do convulsionado terreno onde, por força de circunstâncias inarredáveis, teria novamente de incursionar, recorrendo, para tanto, às suas escassas mas ainda encontradiças reservas de coragem e decisão, herdadas dos ancestrais farroupilhas.
Para a intrépida operação retorno, providenciou, inicialmente, na mudança da toalete costumeira, passando a envergar, por empréstimo a uma das filhas, um conjuntinho blue jeans, o que se tornou possível porque minha vizinha é uma dessas senhoras que, a partir de um dado momento, pode competir, para todos os efeitos (e até com certas vantagens), com as respectivas filhas. Depois, providenciou no aliciamento de um capanga, convidando-me para o desempenho de honrosa missão. Por via das dúvidas, armei-me de um aparelho de defesa pessoal que os franceses denominam canne-épée.
Quando atingimos as cercanias da Casa Masson (heroica sobrevivente, que nada fica a dever a La Pasionaria, em relação à Guerra Civil Espanhola), ela puxou pela memória, lembrou-se da época em que fazia o footing na Rua da Praia, e desfechou a seguinte pergunta:
- Cadê a Rua da Praia?
- Terminou – foi minha peremptória resposta.
- Como assim?
- A Rua da Praia – esclareci – só vinha conseguindo existir, a duras penas, no livro do Nilo Ruschel. Agora que o livro do Nilo Ruschel terminou, isto é, ficou esgotado, a Rua da Praia também terminou.
- Não haverá jeito duma ressurreição? - voltou a indagar.
- Só falando com o José Otávio e conseguindo-se a reedição do livro do Nilo Ruschel – sugeri, esperançado.
Ficamos conversados, abrindo-se, a seguir, um compasso de espera, em cujo interregno, coisa assim de meia hora, minha vizinha resolveu, satisfatoriamente, seu angustiante problema.
Por ocasião da retirada estratégica, inspirada nas artimanhas do Gen. Koutouzov, ao atrair Napoleão para o interior da Rússia tzarista, assistimos a uma anciã botar a boca no mundo, ao ser despojada da respectiva bolsa, com seus proventos de aposentada do INPS, tendo-lhe sido ministrado, com a devida antecedência, uma espécie de rabo de arraia.
Ao defrontarmos a nova área de lazer, menina dos olhos do prefeito Villela, formada com o fechamento de parte da Avenida Borges de Medeiros, alguns engraxates se encontravam em pé de guerra, investindo uns contra os outros, armados com as competentes caixas de serviço.
Então, convidei-a para demorar-se um pouco mais, na expectativa de novos acontecimentos, pois em geral o ambiente se apresenta bem mais desenvolto e beligerante. Diante de sua recusa, procurei demovê-la, argumentando com Balzac, segundo o qual não é de bom alvitre ficar por fora das coisas de sua cidade.
Fazendo ouvidos moucos, ela limitou-se a apelar para meu cavalheirismo, solicitando que tratasse de completar, o quanto antes, as operações de regresso a seu domicílio. Naturalmente foi feita a sua vontade, mas já então resolvi introduzir, na estratégia de retirada, alguns ardis vulgarizados pelo marechal de campo von Rommel, a popular raposa do deserto.
Ao despedir-se, minha vizinha preveniu que não pretende, mas poderá ter de retornar à Rua da Praia, dentro dos próximos 12 anos, não deixando, então, de recorrer novamente aos meus préstimos.
Capa: Tânia Porcher
Foto: Jorge Rolla
Fonte: Reverbel, Carlos. Barco de papel. Porto Alegre: Editora Globo S.A., 1978, p. 127/129.
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