segunda-feira, 10 de julho de 2023

Ramiro Barcelos, o Amaro Juvenal (Carlos Reverbel)

 Nostalgia do lugar-comum

Fui informado de que Maria Helena Martins prepara uma dissertação de mestrado sobre o Antônio Chimango.

O velho Amaro Juvenal, na sua enxuta posteridade, não poderia ter ido parar em melhores mãos. A Maria Helena traz, desde o berço, as chaves do famoso “poemeto campestre”. Vai abrir compartimentos que ninguém, até agora conseguira penetrar. Espero ser dos primeiros a transpô-los, mesmo porque, nesta altura dos acontecimentos, qualquer cochilo nas minhas expectativas poderá coincidir com o chamado desenlace fatal, senão antecipá-lo.

O desenlace fatal ocorreu ontem, a tantas horas, em tal lugar, assim e assado. Era como se fazia os necrológios, antigamente. Por sinal a expressão “desenlace fatal” funcionava muito bem, como, de resto, os demais lugares-comuns que ornamentavam o noticiário de então. O charme do velho jornalismo eram as frases feitas, havendo um chavão para cada situação do cotidiano, assim como para as ocorrências mais escalafobéticas.

Fui procurar esta palavra no “Aurelião”, não a encontrei. Lembro-me, entretanto, de que empreguei muitas vezes, vai para uns quarenta anos. Ela teve regular consumo na gíria daquela época. Mas terminou caindo do galho e depois morrendo, como a camélia. Não chegou, sequer, a ser dicionarizada. Teve o melancólico destino das crianças que morrem pagãs, com o pífio consolo de irem diretamente para o limbo, uma espécie de berçário celestial, com o relógio parado no tempo.

Salvo melhor juízo, tenho para mim que cheguei a adquirir certa desenvoltura no manejo do lugar-comum, assim como no uso e abuso do adjetivo, apesar da lição que recebi (sem aproveitá-la até hoje) de orlando Ribeiro Dantas, por volta de 1936, no Rio de Janeiro.

O Dr. Dantas foi fundado e diretor do Diário de Notícias, jornal que teve o topete de resistir ao DIP e ao Estado Novo. Não escrevia uma linha, sendo, entretanto, um grande diretor de jornal. Talvez tenha sido por isso que passei a defender a tese de que diretor de jornal não deve escrever, bastando saber escolher seus colaboradores. O Dr. Dantas, além de notável administrador, era mestre na arte de escolher. Também era mestre na arte de orientar e fiscalizar o trabalho de sua equipe.

Quando admitia um novo empregado, o Dr. Dantas (aliás, ele não era doutor, mas era assim que a miuçalha do jornal o tratava) dava-se ao trabalho de ler e corrigir a matéria feita pelo “foca”, baixando-a com o seu visto para a oficina, até enquadrá-lo no “espírito da casa”. Lembro-me de que a primeira matéria que lhe entreguei continha esta frase: “o ilustre desembargador baiano”. Ele riscou o adjetivo e me dirigiu a seguinte observação, com certa rispidez: “notícia bem-feita não precisa de adjetivos, o senhor vai deixar de usá-los”.

Naquela época, um dos principais colaboradores do Diário de Notícias era o grande jornalista Lindolfo Collor, que fora diretor de A Federação, órgão do Partido Republicano Rio-Grandense, em cujas colunas aparecia uma escala de adjetivos que dava a cotação dos políticos na bolsa partidária. Quando se juntava ao nome de um jovem prócer o adjetivo futuroso, ficava-se sabendo que ele seria incluído na próxima chapa de candidatos a deputado estadual. O degrau seguinte, na ascensão parlamentar, era a deputação federal, categoria que se fazia acompanhar pelo adjetivo prestigioso. E quando o político chegava ao Senado recebia o tratamento de preclaro.

Na condição de senador, Ramiro Barcelos – o Amaro Juvenal do Antônio Chimango – apareceu muitas vezes nas colunas de A Federação como “nosso preclaro correligionário”. Mas em 1915, quando se deu o rompimento entre Borges de Medeiros e Ramiro Barcelos, este foi estigmatizado com os seguintes adjetivos, devidamente acolherados: “insaciável e incorrigível”.

A dupla adjetivação foi aplicada ao ex-senador no texto de um telegrama de Borges de Medeiros a Pinheiro Machado, ao qual Ramiro Barcelos, já então como Amaro Juvenal, deu esta resposta, na abertura do Antônio Chimango:

Velho gaúcho – Insaciável

De fazer aos mandões guerra,

Nestas páginas encerra

Por um pendor invencível -

Seu amor – Incorrigível

Às tradições desta terra.”



Capa: Tânia Porcher

Foto: Jorge Rolla

Fonte: Reverbel, Carlos. Barco de papel. Porto Alegre: Editora Globo S.A., 1978, p 111/113.

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