Já rendi minhas sinceras homenagens ao Dr. Poupança, como não poderia deixar de fazê-lo. Os leitores, pois sempre os há, como diz o Nelson Rodrigues, devem estar lembrados do saudoso mestre.
Se for preciso avivar a memória de um ou outro, repetirei que se trata de inesquecível catedrático da Economia, seguramente a maior autoridade na matéria que já passou pela nossa Universidade. Como ele ministrava aulas inaudíveis, em que, durante a douta dissertação, apenas se ouvia, a intervalos regulares, a palavra poupança, teria fatalmente de recebê-la por alcunha, como represália dos alunos, como na realidade aconteceu, logo nos primeiros passos de sua longa e proficiente caminhada professoral.
Incompreendido a princípio, a ponto de ser taxado de débil mental pelos espíritos mais levianos e afoitos, o conspícuo mestre não tardou a se impor à admiração e ao respeito de todos, mesmo porque logo se projetaria como o fundador da mais brilhante geração de economistas crioulos, não precisando, para isto, recorrer a nenhum outro recurso pedagógico que não fosse a palavra poupança, única expressão audível ou inteligível nas suas aulas magistrais.
Nestas condições, teria de deixar alguns exegetas de seu pensamento econômico, assim como numerosos discípulos de voo rasteiro, entre os quais me incluo. Seria bem mais pertinente, por exemplo, que, em lugar de racionalização, tivesse sido oficializada a palavra poupança, para definição da política de contenção do consumo de petróleo. A ideia que pulsa e lateja dentro dessa palavra teria, inclusive, concorrido para iluminar os tecnocratas, fazendo com que a racionalização não viesse tardiamente, mas na hora exata; pois, segundo um dos princípios básicos da teoria do Dr. Poupança, não se deixa para depois o que se deve economizar hoje.
Como disse um dos nossos bancos, na carta econômica que dirige mensalmente a seus clientes e acionistas, “é fora de dúvida que estas medidas (de racionalização tardia), para se tornarem eficazes deveriam ter sido tomadas há três anos, para começar a surtir efeitos agora”. Não houve, no momento oportuno, senso de poupança, sem o que as coisas sempre terminam ficando mais difíceis, isto é, bem mais onerosas e até inflacionárias, principalmente em sacrifícios sociais.
Li num editorial, outro dia, que somos um país remediado que é administrado como se fosse muito rico. É a pura e cristalina verdade, isto não passando, em última análise, de falta de espírito de poupança.
Não ousaria propor o retorno puro e simples aos tempos do Dr. Borges, mas nem por isto se devem relegar ao esquecimento completo e irremediável os exemplos que nos vêm daquela austera época. Contou-me, certa vez, o grande criminalista Itiberê de Moura que, tendo sido nomeado juiz municipal de Santa Cruz, pediu uma audiência a Borges de Medeiros, para agradecer-lhe a nomeação.
Foi recebido num dia de audiências públicas, em que as pessoas eram dispostas em fila, à porta do gabinete, por Othelo Rosa, secretário do presidente, sendo levadas a seguir, uma a uma, até a presença do velho morubixaba, que as ouvia em pé, ao lado de sua mesa de trabalho, com Renato Costa, oficial do gabinete, tomando nota dos assuntos.
Depois de apresentar-se, Itiberê de Moura disse de seu agradecimento pela nomeação e foi tratando de retirar-se, pois nada mais o levara à presença do Presidente do Estado, já então em vias de perpetuar-se no governo e de tornar-se, cada vez mais absolutista, chefe unipessoal do Partido Republicano. Entretanto, Itiberê não pôde bater em retirada, como ensaiara, porque o poderoso chefão a ele se dirigiu, paternalmente, perguntando-lhe quando assumiria o juizado.
- “Amanhã embarcarei para Cachoeira, sede da comarca, para tomar posse do cargo, seguindo, depois, para Santa Cruz, a fim de assumir as funções” - respondeu Itiberê de Moura.
- O senhor está mal orientado – disse-lhe o presidente. E acrescentou, já então com acento fortemente autoritário:
- Não há necessidade de ir a Cachoeira. Tome posse do cargo aqui em Porto Alegre, na Secretaria do interior, e siga diretamente para Santa Cruz, entrando em exercício imediatamente. Evitando sua ida desnecessária até a sede da comarca, o Estado poupará duas ou três diárias, como é do meu dever adverti-lo, e assim terá de ser feito.”
Por estas e por outras é que o dr. Poupança sempre votou com o Partido republicano, mantendo-se, até o último suspiro, como admirador incondicional do presidente A. A. Borges de Medeiros.
Capa: Tânia Porcher
Foto: Jorge Rolla
Fonte: Reverbel, Carlos. Barco de papel. Porto Alegre: Editora Globo S.A., 1978, p 45/47.
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