Autocrítica
Tendo eu afirmado, nesta coluna, com excessiva desenvoltura, que “de Gaspar Silveira Martins ficara, principalmente, o derivado gasparinho”, forma-me dirigidos diversos reparos amigáveis, tanto por via telefônica, como de viva voz.
Não posso deixar de acatá-los, mesmo porque, submetendo-os à minha autocrítica, logo cheguei à conclusão de que eram procedentes, o que vem a demonstrar, como sempre, aliás, que este método, praticado largamente pelos marxistas, só pode melhorar as pessoas e instituições, sendo lamentável que os homens de 64 jamais o tenham cultivado, terminando autoconvencidos de que fizeram uma revolução em que só houve acertos, motivo por que foi decretado que tudo vai bem, obrigado.
Por incrível que possa parecer, o invulgar e tempestuoso tribuno do século passado ainda dispõe de numerosos e fiéis cultores de sua memória, o que, afinal de contas, pode ser anacrônico, senão fantasmagórico, mas não deixa de revelar palpitações de um passado rio-grandense repleto de valores, alguns talvez merecendo o milagre da ressurreição.
Em homenagem aos amigos que colaboraram com seus reparos e em atenção ao prezado Dr. Gaspar de Moraes Fernandes, passarei a evocar dois momentos da ação político-administrativa de Gaspar Silveira Martins, um acontecido já na Corte, o outro ainda na Província. O primeiro remonta a 1878, ano em que ele integrou o Gabinete Sinimbu, como Ministro da Fazenda.
Ao assumir suas funções, num momento de grave crise, Gaspar Silveira Martins começou recorrendo ao que hoje se classificaria, com um pouco de boa vontade, como ”revolução cultural” ou “revolução dentro da revolução”, único procedimento (em que os marxistas são mestres) capaz de limpar o terreno para que se possa dar continuidade a qualquer programa de renovação político-administrativa, pois chega fatalmente um momento em que a máquina estatal fica esclerosada ou se corrompe, tendo de ser sacudida e expurgada, de alto a baixo.
Foi o que ele fez, no Gabinete Sinimbu, promovendo completo saneamento nos quadros e profunda modificação na burocracia do Ministério da Fazenda, com demissão dos relapsos e incapazes e dinamização dos serviços, o que lhe permitiu, inclusive, dar andamento às obras da estrada de ferro Bagé-Rio Grande, que haviam emperrado. Talvez interrogado, numa sessão espírita, Gaspar Silveira Martins pudesse transmitir as dicas de que carecemos para colocar certas coisas nos devidos lugares…
O outro episódio, ocorrido na capital da então Província de São Pedro, me foi transmitido por Zeferino Brasil, na última entrevista que ele concederia, pois foi publicada na edição da Folha da Tarde de 27 de janeiro de 1942 e o grande poeta veio a falecer no dia 3 de outubro do mesmo ano, não tendo concedido, nesse espaço de tempo, nenhuma entrevista.
Como meu objetivo, ao entrevistá-lo naquela ocasião, era captar os momentos marcantes de sua vida, perguntei-lhe como havia ingressado no funcionalismo público, seu principal, senão único meio de subsistência, pois pouco ou nada ganhara como poeta e muito pouco como jornalista. A resposta de Zeferino Brasil foi um tanto estirada, mas vale a pena ser reproduzida, pois ilustra, com grandeza, os costumes administrativos de uma época e a correção de um homem de Estado. Contou-me, então, o velho poeta:
“Ingressei no funcionalismo de maneira muito fácil. Basta dizer que, em 1889, um diretor-geral que não me conhecia e que eu abordei em plena Praça da Matriz, quando ele, encerado o expediente, se encaminhava para o Palácio do Governo, onde ia conferenciar com o Presidente da Província, ao ver-me desolado só por aquela hora ter arranjado todos os documentos de que necessitava para instruir meu requerimento de inscrição no concurso que ia realizar-se no dia seguinte na sua repartição, foi tão bondoso que voltou e mandou reabri-la, para receber meus papéis. Fiz o concurso e fui classificado. Quatro dias após, o Presidente da Província, ao examinar as classificações do concurso, perguntou ao diretor de seu gabinete quem era eu. Este respondeu que não sabia e o presidente retrucou:
'Mas é preciso saber. Ele está bem classificado, o lugar é dele. Indague, descubra-o, mande-o vir à minha presença'.
Pergunta daqui, pergunta dali, descobriram ser eu aluno da escola Normal e mandaram chamar-me. Atendi, é claro. Levaram-me à presença do presidente. S. Exª recebeu-me, submetendo-me a verdadeiro teste, como se diz atualmente. Deu-me, depois, úteis conselhos sobre a vida que eu iria iniciar, como funcionário público. No dia seguinte, entrei no exercício do cargo. Foi assim. Facílimo, não?
Ah! Não se esqueça; o chefe que mandou abrir a repartição, para receber o mu requerimento, permitindo-me, com esse gesto, o comparecimento ao concurso, era o Diretor-Geral da Fazenda Provincial, o austero rio-grandense Justo de Azambuja Rangel, e o Presidente da Província que, ao examinar a classificação do concurso, disse que o lugar era meu e mandou-me procurar por toda a cidade e indagar quem eu era, porque ninguém me conhecia, chamava-se Gaspar Silveira Martins.”
Capa: Tânia Porcher
Foto: Jorge Rolla
Fonte: Reverbel, Carlos. Barco de papel. Porto Alegre: Editora Globo S.A., 1978, p 57/59.
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