Porto Alegre, 1905
Quando Vivaldo Coaracy transferiu residência para Porto Alegre, em 1905, foi trabalhar no Independente, bissemanário que circulava nesta capital, com redação e oficina de composição no Largo da Matriz, junto à residência do diretor-proprietário, mas cuja impressão era feita fora, “na Tipografia Gundlach, à Rua da Alegria, para onde eram transportadas, em tabuleiros na cabeça de carregadores, as folhas já paginadas nas respectivas ramas”.
O jornalzinho apresentava outras coisas curiosas; nenhuma, entretanto, seria tão pitoresca quanto a figura de seu diretor-proprietário: Otaviano Manuel de Oliveira. Tendo trabalhado na A Federação, anteriormente, ele se dizia “republicano histórico”, colocando-se no mesmo plano de Venâncio Aires, Júlio de Castilhos e demais fundadores do órgão. Mas a sua função era apenas fazer a entrega do jornal aos assinantes.
Havia, porém, alguma razão para a sua auto investidura como “republicano histórico”, pois não era para qualquer um, naqueles tempos, o ofício de entregador de jornal. Os d’A Federação, por exemplo, “eram homens fortes e decididos, sempre armados de cacete, capazes de enfrentar com valentia física os capangas dos adversários quando estes procuravam impedir a circulação da folha”.
De qualquer forma, o Independente, seu jornal na Porto Alegre de 1905, quando Otaviano já havia evoluído na profissão, de entregador a diretor-proprietário, não era de molde a recomendar o seu “republicanicismo histórico”, sendo muito inclinado ao que hoje se conhece por “picaretagem”, talvez em razão da dura necessidade de sobreviver, pois a concorrência lhe era bastante ingrata. Já circulavam naquela época, nesta capital, nada menos de oito jornais diários, dos quais três (e dos mais prósperos) em língua alemã, inclusive o Koseritz Deutsche Zeitung, fundado pelo grande Karl von Koseritz, de quem José Fernando Carneiro deixaria excelente estudo biográfico.
Embora tivesse trabalhado na Cidade do Rio, o jornal de José do Patrocínio, que vivera uma fase próspera e brilhante, com momentos de glória e popularidade, Vivaldo Coaracy não teve oportunidade, ao chegar a Porto Alegre, senão empregar-se como redator do Independente, passando a viver de minguados e ocasionais “vales”. Era enorme a distância entre o gabarito do redator, que além de sua experiência no jornalismo da metrópole, ao lado do Tigre da Abolição, trazia boa formação humanística, feita no Colégio Pedro II e na Escola Militar (sob as vistas de um homem ilustre, Licínio Cardoso, seu tutor), e o jornalzinho porto-alegrense onde fora trabalhar, premido pela necessidade de ganhar a vida a qualquer preço.
Tendo residido em Porto Alegre, no período compreendido entre 1905 e 1919, Vivaldo Coaracy, no segundo volume de suas memórias (Encontros com a Vida – José Olympio Editora), enriquece a bibliografia rio-grandense com subsídios do maior interesse, contribuindo, assim, para que ficassem documentados aspectos marcantes da vida política, social e cultural desta capital e do estado, num dado momento de nossa evolução, de que ele foi contemporâneo, em alguns casos colocado no centro dos acontecimentos.
A leitura das memórias de Vivaldo Coaracy, escritas com mão de mestre, num estilo tenso e enxuto, como o de Graciliano Ramos, a cuja família espiritual parece pertencer o autor, nos leva a “viver” em Porto Alegre, no tempo do pontificado do Dr. Borges, época em que “o indivíduo era pica-pau ou maragato intrinsecamente, com um calor sempre próximo a se transformar em paixão”, mas quem ganhava as eleições era sempre o Cel. Marcos de Andrade, chefe politico da capital e arredores… Época em que, como sublinha agudamente o memorialista, “frugal e habituado a uma existência simples e, sob muitos aspectos, rude mesmo, o rio-grandense não exigia para as condições materiais da vida certos requisitos de comodidade, conforto e até higiene, já então familiares às populações de outras cidades brasileiras”.
Mas vejamos um flagrante (e trata-se de verdadeiro flagrante, coisa que parece ter saído de um “animatógrafo”, como se denominava na época o cinema) do homem que mais marcou aqueles tempos, Borges de Medeiros: “Quase todos os dias, ao fim da tarde, era visto, passeando a pé, em companhia de alguns de seus auxiliares imediatos, pelas ruas do centro da cidade. Caminhava a passos lentos, apoiando a bengala na calçada, conversando naturalmente com o companheiro, como qualquer outro cidadão, sem nenhum aparato. Não havia a exibição, que mais tarde se tornou comum e de praxe, de qualquer sinal de guarda pessoal. Naquele tempo isso não era julgado necessário e seria até considerado grotesco”.
Embora contasse com oito jornais diários, o que o memorialista registraria como “bom índice de vitalidade da opinião pública”, Porto Alegre ainda não completara os 80 mil habitantes. Os bondes eram puxados a burro e havia luz elétrica apenas no perímetro central, somente até as 10 horas da noite (“cinco minutos antes as luzes piscavam, dando sinal para que corresse a acender velas ou lampiões de querosene quem não quisesse ficar no escuro”).
Os literatos da convivência do autor (e dos quais traça expressivos perfis) eram Alcides Maya, Zeferino Brasil, Marcelo Gama, Vítor Silva, Barbosa Neto e Mansueto Bernardi, enquanto Álvaro Moreira, Filipe de Oliveira e Augusto Meyer “eram ainda vírides promessas”. O grande problema de todos era se fazerem editar, pois o velho Laudelino Barcelos, muito conservador, não “concebia a ideia de se arriscar em aventuras editoriais”. Foi preciso, para isso, que aparecesse José Bertaso, com “a sua inteligência e o seu espírito de iniciativa”.
Capítulo dos mais interessantes e ilustrativos das memórias porto-alegrenses de Vivaldo Coaracy é sem dúvida o relacionado com a vida que levava, naquela época, a comunidade teuto brasileira, com a sua imprensa, os seus bancos, as suas sociedades (mundanas, beneficentes, recreativas e desportistas), os seus bares e restaurantes (como o Heidelberg Fass e o Strammen Hund), as suas livrarias – Krahe, Meyer, Gundlach – as suas zonas residenciais, formando tudo, como pareceu ao autor, nos primeiros anos do século, “um núcleo germânico embutido em aparente isolamento dentro do meio nacional, cioso de conservar seus costumes e sua língua, como expressão de cultura, e esforçando-se por ser autossuficiente”, situação essa que, como se verifica hoje, modificou-se por completo com o decorrer do tempo, dela não subsistindo nada além de reminiscências já incorporadas à história da aculturação dos teutos e seus descendentes na vida rio-grandense.
O ambiente em que vivia a comunidade germânica em Porto Alegre feriu de tal modo a sua retentiva de observador vindo de fora que, muitos anos depois, já residindo em São Paulo, Vivaldo Coaracy tentou fixá-lo, com as suas características, através de um romance, intitulado Frida Meyer, cuja edição não chegou a ser distribuída, pois foi a última publicação da Editora Monteiro Lobato antes da falência, de modo que os exemplares impressos, em lugar de serem distribuídos ao público, foram retidos e arrolados na massa falida, perdendo-se.
Foi lamentável, pois era a primeira vez que se aproveitava, num romance de costumes, semelhante material, o qual continuaria inexplorado pelos anos a fora; lamentável, ainda, pelo fato do autor, homem de severa autocrítica, reconhecer e proclamar, no “ocaso da existência”, quando escreveu suas memórias, “vício de velhice conformada”, que o seu romance “não merecia, talvez, a sorte que lhe coube, de natimorto”.
Capa: Tânia Porcher
Foto: Jorge Rolla
Fonte: Reverbel, Carlos. Barco de papel. Porto Alegre: Editora Globo S.A., 1978, p 150/154.
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