Outro dia visitei um amigo, recém-chegado à casa dos 70, encontrando-o na maior euforia. Logo percebi o motivo de sua excelente disposição: naquele dia a seção de necrológios registrara o passamento de vários macróbios, entre os quais uns três ou quatro beirando os 90 anos.
Esse meu amigo não opõe qualquer restrição aos convites de enterro, considerando-os, mesmo, bastante úteis e até necessários, do ponto de vista informativo. Além do mais, muito relacionado na cidade, é rara a semana em que ele, advertido por tais comunicações, não tenha de passar alguns telegramas de pêsames, reservando somente para os mais íntimos o seu solene comparecimento às cerimônias fúnebres. É partidário sem extremismos – diga-se de passagem – do princípio segundo o qual “quem não é visto, não é lembrado”, evitando, assim, de introduzir-se, com afoiteza e incontinência, nos ambientes mortuários.
A sua idiossincrasia pela coluna dos necrológios decorre da circunstância de figurar sempre, na pequena biografia dos defuntos, a idade em que terminaram seus dias, o que, para sua tranquilidade, não é costume fazer-se nos simples e despojados convites de enterro, uma das poucas matérias em que se pratica a regra básica do bom jornalismo: objetividade e economia de espaço.
Era o que observava, um dia desses, a estagiária da Faculdade de Comunicações da PUC que chamou a si o generoso encargo de atualizar-me nas modernas técnicas da profissão.
Reatando o fio da narrativa, uma espécie de cabresto de couro trançado, segundo Balzac, devo esclarecer que, ao abrir a página de jornal em que é publicada a seção de necrologia, geralmente o meu amigo não tem ânimo suficiente para encará-la de frente, examinando-a cautelosamente e de esguelha, até certificar-se de que poderá abordá-la sem maiores perigos para as suas vetustas coronárias.
Para isso, é preciso que 30 por cento dos óbitos, pelo menos, tenham ocorrido dentro de uma faixa etária superior à sua, isto é, de preferência bem acima dos 70 anos. Como se vê, ele não é dos mais esganados, contentando-se com uma percentagem relativamente razoável, embora possa haver discordâncias fundamentais entre os estudiosos da demografia no Brasil, cuja expectativa média de vida tem avançado, mas ainda está muito distante das idades consideradas provectas, tanto assim que todo brasileiro, depois dos 50 anos, pode considerar-se teoricamente morto, portanto, faltando, apenas, a encomendação e o sepultamento, havendo casos, conforme o defunto, em que se impõe a missa de corpo presente.
Processa-se, então, na mente de meu amigo, uma operação matemática bastante trivial, não passando de elementar conta de subtrair, mas que, para ele, assume proporções transcendentais, em termos vitais ou existenciais, senão existencialistas, segundo o Sr. Soeren Aaby Kierkengaard. Tentarei explicá-lo, vendendo-a pelo que a comprei, dele próprio.
Por exemplo: quando é noticiado um óbito aos 96 anos, ele subtrai 70 anos (a sua idade) daquela cifra, chegando, assim, à conclusão de que ainda poderá dispor de 26 anos de vida. A seguir, passa a fazer planos, por vezes mirabolantes, como inscrever-se no Instituto Pré-Vestibular ou, então, tomar aulas de natação na piscina térmica do Grêmio Náutico União e casar em terceiras núpcias.
Entretanto, quando a margem de vida a seu favor apresenta-se por demais exígua, como nos casos em que a operação aritmética se restringe a 71 menos 70, ele mergulha na mais cinzenta e melancólica depressão, chegando ao ponto de tornar-se completamente indiferente ao mundo exterior, razão pela qual a família, em tais circunstâncias, já teve de providenciar, diversas vezes, no seu internamento numa clínica psiquiátrica particular, para que lhe seja aplicada a devida terapêutica ocupacional, que consiste, geralmente, em trabalhos de cerâmica, senão de agulha, fazendo-lhe ainda participar, como recreação e lazer, de campeonatos de bilboquê e ioiô, bem como de torneios de peteca, sapata e tempo-será.
O Paulo de Gouvêa, no tempo em que fazia humorismo por sinal de ótima qualidade, contou de um jornal do interior em que o obituário era noticiado numa secção chamada Vida Necrológica. Talvez a adoção desse título, pela imprensa local, produzisse o efeito de reconciliar o meu velho amigo com a ideia da morte, livrando-o da neurose de que se acha possuído, já diagnosticada como uma nova modalidade de gangorra – a implacável gangorra existencial – que o mantém numa verdadeira sarabanda entre a euforia e a depressão.
Capa: Tânia Porcher
Foto: Jorge Rolla
Fonte: Reverbel, Carlos. Barco de papel. Porto Alegre: Editora Globo S.A., 1978, p 138/140.
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