Arqueologia da empada
As pessoas de certa idade devem ter percebido que a empada desapareceu, principalmente a de camarão. Embora o passamento tenha ocorrido há bestante tempo, dei-me conta da irreparável perda subitamente.
Ao que parece, os velhos ficam sujeitos a essas intermitências da memória. Felizmente, quando é um belo dia, assim sem mais nem menos, o fio da meada se restabelece. Foi o que me aconteceu, com o retorno da empada ao aconchego das gratas recordações.
Trata-se, naturalmente, das empadas da Confeitaria Rocco. Embora as novas gerações não tenham notícias do histórico estabelecimento, as empadas do velho Rocco foram um dos esplendores da civilização porto-alegrense, mesmo na época em que a azeitona começou a escassear na composição de seu incomparável recheio, de resto um segredo da casa.
Não havia, entretanto, a intenção de explorar o consumidor: a falta de azeitona ocorreu por ocasião da Segunda Guerra Mundial, portanto bem antes das oliveiras cultivadas pelo embaixador Luzardo terem frutificado, antecipando-se, assim, ao atual modelo econômico do País, que é, como se sabe, pela substituição das importações.
Saíam três ou quatro fornadas diárias do produto, mas a mais apetecida era a que aparecia ali pelas 5 e meia da tarde, exatamente no momento em que começava a formar-se a roda dos amigos da casa, uns senhores de azul-marinho e idade cor de cinza, que ocuparam a mesma mesa durante 40 anos, bebericando e jogando cartas, sem tomar conhecimento do resto do mundo, nem mesmo das próprias empadas.
Principalmente para os efeitos desta balada da empada, eu gostaria que o jogo fosse o provecto gamão, mas era outro, menos conspícuo e, talvez, moderninho para a época: o trêfego lasquiné.
Ceta vez, intrigado com esse jogo, perguntei a um dos parceiros no que consistia o tal lasquiné. Depois de esclarecer que era um jogo que exigia muita agilidade mental, sendo, por incrível que pareça, um tanto jocoso, deu-me a seguinte explicação: “o lasquiné deriva diretamente do chamamé”.
Fiquei encantado com a resposta, talvez por não tê-la entendido, ganhando, em troca, uma boa compensação: se até então ignorava apenas o lasquiné, passaria dali em diante a ignorar também o chamamé, mantendo-me, assim, desde 1940, na lapidar e definitiva ignorância de ambos os interessantes jogos.
A Confeitaria Rocco (cujo prédio ainda existe, como corpo sem alma, diga-se de passagem) ficava no caminho das Faculdades, razão pela qual era muito frequentada pelo que então se chamava “a mocidade das escolas”. Depois desse esclarecimento, poderei contar, sem maiores preâmbulos, as emoções de um júri (crime de morte por 11 pontaços de facão) a que tive ocasião de assistir, no foro de Santiago do Boqueirão.
A certa altura, sem quê nem porquê, o causídico que fazia a defesa resolveu bosquejar uma espécie de autobiografia, talvez para comover os jurados com a sua vida de estudante pobre. Entre diversos e patéticos subsídios, apresentou o seguinte:
“Só as empadas do Rocco sabem quantas vezes deixei de almoçar por falta de numerário”.
Ora, dependendo do número de empadas que consumisse, o brilhante criminalista poderia até ficar mais bem alimentado do que comendo o engasga-gato da pensão onde morava, mesmo porque, naquela época, a fome era geral nas pensões de estudantes, independentemente das posses do morador, não havendo, assim, muitas vezes, outra salvação senão apelar para as opíparas e substanciosas empadas do Rocco.
Outra vez, participei de uma festa de casamento, que teve lugar na Rua da Margem e onde o orador que brindou os nubentes, como era costume, encerrou suas “breves e descoloridas palavras” desejando “ao novel e distinto par, pela vida a fora, a mesma fartura desta mesa pletórica de comes e bebes, inclusive as famosas empadas da Confeitaria Rocco”.
Se ainda existem empadas, é como se não existissem. Com o fechamento do Rocco, o produto tornou-se arqueológico. Resta, apenas, a esperança de que, em futuras escavações, daqui a uns 200 anos, seja descoberto o segredo de sua receita.
Com o encerramento da civilização da empada, entramos no ciclo da civilização do cachorro-quente. Por sinal, outro dia, embretado numa lancheria, que nem gado vacum, registrei o seguinte pedido ao garçom do referido brete: “Me dá um cachorro pra levá. Mas capricha no embrulho. É pra presente”.
Capa: Tânia Porcher
Foto: Jorge Rolla
Fonte: Reverbel, Carlos. Barco de papel. Porto Alegre: Editora Globo S.A., 1978, p 141/143.
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