segunda-feira, 10 de julho de 2023

Gasparinho (Carlos Reverbel)

 

Meu velho amigo Horizonte Furtado faz parte do concílio ecumênico de aposentados que se reúne na Praça da Alfândega. Encontrei-o, um dia desses, naquela área de lazer (e assaltos) um pouco fora de seu natural.

Homem comedido, de pouca fala e, frequentemente ungido de conformidade lastimosa, estava possuído de irreconhecível incontinência verbal, procedendo como se fosse um boquirroto contumaz.

Corria perigo de enveredar pelos caminhos resvaladiços da oposição, quando não da própria contestação ao regime.

Aproximei-me do velho amigo e de sua turma, em que figuram três grandes assaltos e cinco assaltos leves, sobrando, apenas um ancião em estado de incolumidade temporária, exatamente no momento em que ele reivindicava para o obscuro cidadão mineiro que inventou o depósito compulsório de dois cruzeiros por litro de gasolina consumido a glória de ter seu nome associado à genial criação.

Por que simoneta” - interrogava Horizonte - “se o inventor da mágica é um popular das Alterosas? Trata-se, além do mais, de uma invenção de que não existe similar em parte alguma. Talvez seja a primeira ideia, de feição absolutamente original, jamais cogitada para a administração do País. Mais uma razão para que se faça justiça ao seu legítimo criador que, ainda por cima, teve o patriotismo de cedê-la ao Governo, de mão beijada, sem exigir royalties nem direitos autorais”.

Não se pode deixar de concordar com o inusitado assomo do novel porém eloquente leguleio. Não se pode, igualmente, deixar de concordar com a argumentação que ele passou a desenvolver, acrescentando, a seguir:

De Gaspar Silveira Martins ficou, principalmente, o derivado gasparinho, isto é, a fração, o décimo ou vigésimo dos bilhetes da loteria. Embora a expressão já ande um pouco em desuso, circulando, apenas, entre macróbios, sobretudo no Rio de Janeiro, ela ainda não recebeu atestado de óbito, como arcaísmo, por parte de nossos dicionaristas, tendo sido embalsamada por Laudelino Freire, Aurélio Buarque de Holanda, Francisco Fernandes e outras autoridades.”

Sempre com a palavra e não confiando nas reminiscências históricas de seu pequeno mas seleto auditório, Horizonte Furtado houve por bem ministrar, em continuação, a seguinte aula sobre os bons tempos de D. Pedro II, com o que reavivou seus pruridos antirrepublicanos (o que já seria outra história, segundo Rudyard Kipling):

A loteria da época andava padecendo de grandes encalhes porque os bilhetes eram unitários, somente podendo ser vendidos inteiros, como a palavra está dizendo, mas sinto-me no dever de trocar a coisa em miúdos, por via das dúvidas. Como superar a grave crise lotérica, numa época de tinideira geral bastante parecida com a nossa, se poucos, muito poucos tinham o privilégio de arriscar bilhetes inteiros? Foi quando o conselheiro Gaspar Silveira Martins, Ministro da Fazenda no gabinete do também conselheiro João Luís Vieira Cansansão de Sinimbu, formado pelo Partido Liberal a 5 de janeiro de 1878, teve a providencial ideia de fracionar os bilhetes de loteria, passando a oferecê-los a retalho, ou seja, em pedaços, cujos décimos ou vigésimos logo receberiam o apelido de gasparinhos.”

Feita a erudita exposição, ele assim concluiu:

Tendo sido o próprio Gaspar Silveira Martins o autor da ideia salvadora, nada mais justo do que as frações lotéricas por ele criadas assumirem a sua legítima filiação. Embora tenha prestado grandes serviços ao País (dos quais ninguém se lembra, salvo o Dr. Gaspar de Moraes Fernandes), foi graças aos gasparinhos que o famoso tribuno terminou sendo dicionarizado, o que não deixa de ser uma porta estreita e difícil para se ingressar na posteridade, mesmo, indiretamente. Ao fracionar os bilhetes de loteria o grande orador pretendia, apenas, aumentar os recursos do erário, não perpetuar-se como verbete de dicionário, através de palavra derivada de seu nome, aliás já glorioso na época”.

Nesta altura, Horizonte Furtado assumiu (para surpresa geral) outra atitude inabitual, tornando-se francamente futurologista, ao afirmar que “o Ministro da Fazenda também entrará para a posteridade dos dicionários, mas de carona, pois a invenção das simonetas (aliás, malogradas) não lhe pertence.”

E rematou, de forma melancólica, embora um tanto cabalística:

Como eram diferentes os homens sob o reinado do Sr. D. Pedro II!”



Capa: Tânia Porcher

Foto: Jorge Rolla

Fonte: Reverbel, Carlos. Barco de papel. Porto Alegre: Editora Globo S.A., 1978, p 54/56.

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