segunda-feira, 10 de julho de 2023

O transporte coletivo (Carlos Reverbel)

 

A chuva que não veio

Estive outro dia no Beira-Rio. Foi uma luta para chegar ao estádio. Todas as vias de acesso estavam congestionadas, tal a quantidade de veículos que se arrastava com o mesmo destino.

Enquanto o motorista do táxi deblaterava contra o engarrafamento do trânsito, eu imaginava as dificuldades que teria para conseguir um bom lugar naquela catedral de Notre Dame do Futebol.

Chegando finalmente ao destino, depois de uma travessia tão temerária e incruenta quanto a participação dos táxis de Paris na batalha do Marne, logo constatei que o estádio se encontrava quase vazio, não tendo recebido, sequer, uma quarta parte de sua lotação. Lotados estavam, apenas, os locais de estacionamento.

Como inúmeros outros, este flagrante urbano mostra o grau de hipertrofia do transporte individual na vida porto-alegrense. Chegou-se a esta distorção por causa de descaso a que ficara relegado o sistema de transporte coletivo.

Foi preciso a crise do petróleo para que nos déssemos conta de que o primado do transporte individual, em detrimento do coletivo, é uma aberração urbana, não apenas do ponto de vista social, mas também do ponto de vista econômico.

A crise petrolífera, de que nos dignamos tomar conhecimento com três anos de atraso, ficando esse tempo todo à espera de que Deus, sendo comprovadamente brasileiro, talvez tomasse a providência de nos brindar com chuvas de gasolina azul-celeste, teve o mérito de nos obrigar a reformular a política que vinha sendo seguida na área dos transportes urbanos.

Para que se chegue a bons resultados nesta reformulação, estabelecendo-se o primado do transporte coletivo sobre o individual, temos de partir da premissa de que o usuário não é gado vacum. Observada essa diferenciação fundamental, teremos preparado a área para o equacionamento do problema em termos humanos.

Levo, assim, bastante fé na crise do petróleo como fator de aprimoramento do nosso sistema de transporte coletivo urbano, motivo pelo qual peço permissão para propor o título de porto-alegrense honorário ao soberano da Arábia Saudita.

Por outro lado, haveria forte motivo para que se cumpra a vontade do prefeito Vilela, quando nos aconselha a amar a cidade.

Cercear o transporte individual, sem introduzir melhorias substanciais no sistema coletivo, tornando-o compatível com a dignidade do cidadão, corresponderia a rebaixar um número ainda maior de porto-alegrenses à condição de gado vacum, com o prevalecimento de estarmos cansados de saber que este é um rebanho atambeirado, a ponto de não recorrer, sequer, ao direito elementar e líquido e certo do berro.

Uma comunidade que absorve os maus serviços que lhe são cotidianamente administrados, sem tugir nem mugir, como se estivesse sendo tratada a pão de ló, termina se acomodando a toda sorte de espoliações.

Se as medidas que vêm sendo oficialmente apregoadas em favor da recuperação do transporte coletivo forme realmente eficazes, como uma das principais metas da retardatária e impropriamente chamada política de racionalização do consumo de combustível, isto será decorrência da crise do petróleo, razão pela qual não se poderá deixar de recitar, com unção religiosa, e de preferência na nobre língua de Racine, o anexim segundo o qual à quelque chose malheur est bon.

Por estas e outras, confio em Deus que o Brasil sairá bastante melhorado da crise do petróleo. Teremos aprendido, pelo menos, que não podemos acionar o nosso desenvolvimento à base de um combustível “árabe”, nem permitir que o País, em lugar de explorar, seja explorado pelo rodoviarismo.

A observação não é minha: é de um jornalista europeu. Aludindo à hipertrofia do transporte rodoviário entre nós, disse ele que, por termos relegado a ferrovia e a navegação a plano secundaríssimo, somos um País estrangulado pelas estradas de rodagem e pelos veículos que nelas queimam gasolina, óleo e a nossa receita cambial.

Poder-se-ia acrescentar que ainda respondem, de quebra, pela maior parcela do obituário nacional, conferindo-nos o recorde mundial de acidentes.



Capa: Tânia Porcher

Foto: Jorge Rolla

Fonte: Reverbel, Carlos. Barco de papel. Porto Alegre: Editora Globo S.A., 1978, p 39/41.

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