segunda-feira, 10 de julho de 2023

Ócio com dignidade (Carlos Reverbel)

 

Continuo arrumando as armas e bagagens da aposentadoria. Faço parte de uma categoria de indivíduos que deixa a vida passar, acumulando projetos para quando estiver aposentado. Não há melhor maneira de jamais realizá-los. Respondo pela eficiência do método, tomando a liberdade de recomendá-lo às novas gerações.

Fiel a esse critério, tenho dedicado os últimos dias a botar em ordem os livros que juntei, ao longo de uns quarenta anos de garimpagem pelos sebos da cidade, com diversos objetivos, entre eles o de reunir material para uma pequena monografia sobre as antigas tipografias porto-alegrenses. É este, aliás, um dos principais projetos que venho transferindo para os anos de aposentadoria, embora saiba, de antemão, que não será executado.

Espero que me compreendam, pois nada é mais gratificante ao cristão do que as boas intenções, matéria em que, modéstia à parte, me considero bastante habilitado. Acredito, por outro lado, que Cícero me aprovaria, pois é público e notório que ele era muito chegado ao ócio. Daí a sua clássica expressão: Otium cum dignitate.

No século passado não tínhamos editoras, propriamente. Havia diversas tipografias e quase todas publicavam livros, em geral pagos pelo autor. As oficinas dos jornais também imprimiam livros, por vezes a reprodução de folhetins que eles próprios haviam publicado, dia a dia.

Caldas Júnior criou a “Biblioteca do Correio do Povo”, coleção de livros que reunia os folhetins publicados antes no seu jornal. Os volumes eram de pequeno formato, tipo livro de bolso. Consegui um exemplar dessa coleção: O Chapéu de Três Bicos, por D. Pedro de Alarcon. Apareceu no ano de 1897. a ação do folhetim se desenvolvia na época em que “reinava ainda em Espanha D. Carlos IV de Bourbon, pela graça de Deus, segundo diziam as moedas, e por esquecimento ou graça especial de Bonaparte, segundo os folhetins franceses”. Além dos seus folhetins, o Correio do Povo editou diversos outros livros.

Havia, também, a “Biblioteca d'A Federação”, igualmente formada por folhetins anteriormente publicados pelo jornal, em que pese o rigor doutrinário de Júlio de Castilhos, seu diretor. O volume de que disponho se intitula O Açougueiro de Meudon. É de autoria de Júlio Mary, em tradução de Antenor Soares e foi publicado em 1895. Nesta passagem, temos um pouco da atmosfera do folhetim: “Sobre a estrada dos Príncipes que conduz a Villebon, pequenos veículos baixos levavam ao bosque os habitantes das aldeias espalhadas pelo Meudon. E ao longe, no outeiro de Clamart, elevava-se do meio das árvores uma voz cheia e sonora, cantando a plenos pulmões uma canção popular: 'Eu vou às águas de Zazá'.”

Em época mais recuada a tipografia do Jornal do Comércio publicara alguns livros como Roma Perante o Século, de autoria do notável Karl von Koseritz, lançado em 1871, reunindo os editoriais que o autor escrevera para aquele jornal porto-alegrense “sobre os jesuítas, o dogma da infalibilidade e os papas”. É um dos volumes mais interessantes (e raros) de minha coleção. Diz Koseritz, no prefácio da obra: “Meu fim, ao publicar estes estudos, foi arrancar a venda aos olhos do povo, que vive iludido pelo clero, e permitir-lhe lançar um olhar perscrutador para dentro daquela oficina em que há milênios se forjavam as cadeias da superstição, do prejuízo, do obscurantismo e do atraso intelectual. Quis contribuir com as minhas insignificantes forças para derrubar o fundamento em que Roma assentou o seu edifício do obscurantismo e para consegui-lo tentei provar com fatos históricos e autênticos que a cega fé que o Vaticano exige dos fiéis repousa sobre falsificações e verdadeiros estelionatos religiosos e políticos, sendo explorada a ignorância do povo em exclusivo proveito de ambiciosos clérigos”.

A tipografia de Rodolfo José Machado, estabelecida na Rua da Praia nº 338, merece acurada pesquisa, pois era a que mais se aproximava de uma casa propriamente editora, dedicando-se à publicação de livros didáticos, os melhores da época. Rodolfo José Machado publicou obras que exerceram grande influência na formação das antigas gerações rio-grandenses, como a Seleta em Prosa e Verso, de Alfredo Clemente Pinto; a Aritmética, de Sousa Lobo; a Gramática Portuguesa, de Bibiano de Almeida; a Nova Gramática inglesa, de Frederico Fitzgerald; o Manual de Filosofia, de Joaquim de Sales Torres Homem; A História do Brasil, de João von Franckenberg, etc.

Entre outros livros impressos na histórica tipografia, disponho do Catecismo Constitucional Rio-Grandense, de autoria de Francisco de Paula Lacerda d'Almeida, “advogado nos auditórios da capital e lente catedrático da Escola Normal”. Editada em 1895, essa obra destinava-se a preparar “os colegiais para o pleno exercício dos direitos do cidadão, incutindo-lhes, ao mesmo tempo, plena noção dos respectivos deveres”. Não tenho menor receio de afirmar que se trata de uma obra-prima no gênero.



Capa: Tânia Porcher

Foto: Jorge Rolla

Fonte: Reverbel, Carlos. Barco de papel. Porto Alegre: Editora Globo S.A., 1978, p 121/123.

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